segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Miolos



Aproximou-se dos miolos, deixados a um canto. Pegou-os e levou-os à cozinha.

Aprendeu a gostar de miolos com sua mãe. Ela os fazia maravilhosamente.

As cervejas estavam estupidamente geladas. Quando os miolos ficaram no ponto, pô-los num prato, colocou farofa em cima e comeu-os babosamente com goles de cerveja.

Enquanto fazia isso, passava na memória aquele dia, na quinta série do Fundamental, em que dezoito moleques lhe afundaram no vaso sanitário, impiedosamente.

"Saí, desatinado,
Vieram pessoas
E me botaram 
Na merda.
Vieram pessoas,
Levei porrada,
Caí na merda,
Mas estou vivo".

Delas os primeiros miolos que comera.

domingo, 14 de setembro de 2014

A FOME E A IRA DAS VINTE E UMA


Estela acordara naquela cidade sem saber como fora parar lá.
Só lembrava de estar num ônibus que se dirigia à cidade de Registro, estado de São Paulo.
E de repente acordou ali. No leito de um quarto decorado à moda clássica romana. Uma cama de casal muito bem arrumada e cheirosa.
"Dormiu bem?"
A voz veio de um homem velho, vestido com um roupão de seda. Seu nome era Antonin, filho de francês com brasileira.
"Onde estou?"
"Na minha residência. Você precisava de um lugar para dormir. E eu disse que poderia ficar aqui."
"Não me lembro de nada disso"
"É verdade. Você deve ter bebido muito."
Ela se levantou, meio cambaleante. Foi até a janela de vidro.
Uma névoa muito densa iniciava seu domínio, mas ela enxergou alguma coisa.
O que viu deixou-a tão perplexa quanto ela ter surgido ali, sem lembrança do que a levara até aquele lugar.
"O que são aqueles?"
" Tá falando dos mausoléus?"
" É. Você mandou construí-los?"
" Sim, pra cada uma das minhas falecidas mulheres construí um."
" Você teve tantas mulheres assim?"
" Vinte e uma para ser exato."
" E todas morreram?"
" Infelizmente."
" Que Deus dê paz para elas e as liberte!"
Quando Estela expressou este desejo, uma força imperceptível começou a alterar o ambiente. Quem tivesse ouvidos apurados diria que alguma coisa estalou além, nos mausoléus.
" Estou um pouco tonta.."
" Durma então. Depois nos falamos."
Ele notou que logo ela estaria totalmente à sua mercê. Era só preparar o ambiente para a inoculação mortal.
Ajustava para ela o vigésimo segundo mausoléu. Gostava de possuir mulheres mortas. Mas antes armava, para cada uma delas, um casamento fictício, para o qual contratava sempre atores amadores, aos quais dava um fim posteriormente. 
E fazia questão que todas as meninas tivessem treze anos, fossem loiras, tivessem um metro e sessenta e cinco, e pesassem quarenta e oito quilos.
Antes da aplicação da injeção em Estela, resolveu tomar um banho. Terminado o banho, estava tão mole, tão fatigado, que resolveu tirar um cochilo, antes de fazer o que planejou. Olhou pro lado e gostou do que viu. Deitaria ao lado dela por alguns minutos, os últimos da vida da menina.
Para ele, foi uma noite incomum. Cheia de pesadelos. Sombras voejavam por sobre o quarto, asas estalavam na escuridão, fantasmas davam asas à liberdade da madrugada, antes que o galo cantasse.
Quando Antonin acordou, de súbito, devido ao estrondo das aves das sombras, olhou com extremo susto à sua volta.
Estavam ali os fantasmas de suas vinte e uma esposas, que, sem perda de tempo, avançaram sobre a jugular de Antonin e sugaram todo o seu sangue, após o que, incontinenti, o arrastaram para invisível abismo, ele aos gritos que ninguém no mundo dos vivos ouvia....nem dos mortos tampouco.
De manhãzinha, Estela despertou. A seu lado, Antonin, de olhos esbugalhados e corpo encaveirado, tornara-se um defunto, ou melhor, uma múmia, parecendo estar morto há séculos sem conta.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

CORPOS DE VELHINHAS




Aqueles corpos de duas lésbicas velhinhas sempre boiavam em qualquer asfalto aonde decidisse deslizar seu carro. A lembrá-lo. A lembrá-lo. A lembrá-lo. Mas ele não as jogou na avenida. 
No entanto, elas faziam questão de acusarem-no, aparecendo nuas, com veias azuis à mostra. 
Desde o seu arrependimento, tal acontecia; começaram a explicitar a sua nudez, fantasmas exibicionistas. E jurava, ele não curtia mais LSD, cocaína, revistas eróticas, nem velhinhas como as....que o criaram.
Na sua aldeia, era o único menino que tinha mães lésbicas.
No começo, tinha até orgulho.
Um orgulho que lhe surgiu junto ao ódio que sentia de todos os outros que lhe zombavam.
Uma dificuldade foi começar a namorar.
Tinha bloqueios na fala. Era chegar perto das meninas e o pau da barraca subir. Bloqueando o verbo naturalmente.
Quando passou a faturar algum, começou a pagar meninas para que lhe permitissem acariciá-las. Gostava de alisá-las. Chamava-as, ora de Lili, ora de Mimi. O nome de suas progenitoras.
Depois de um tempo, começou a contratar para que pudesse esbofeteá-las. Chamava-as, ora de Mimi, ora de....isso: Lili.
Foi assim, graduando, graduando, até que chegou a contratar velhinhas parecidas com suas mães, para masturbá-lo. Chamava-as......isso mesmo.
Duas dessa velhinhas não desgrudaram mais. Sempre prontas ao prazer.
Chegaram quase a concorrer com suas mães. Foi quando decidiu assassiná-las. Não as contratadas. Mas sim as mães Mimi e Lili.
Preferiu ficar com as outras, mais úteis, segundo pensava.
Mas não matou suas progenitoras no asfalto. Lembrava perfeitamente. Esperou que ficassem nuas, no rala e rola.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

NO MUNDO DOS MORTOS



Chegou de noitinha à entrada daquela cidade, enormemente cansado.
Encostou-se em uma árvore centenária, a quinze metros do rio. Pôs a mala velha de lado e fechou os olhos.
Um rugido. Abre os olhos, assustado. À sua frente : um circo, montado a uns vinte metros de si, no sentido da cidade. Uma movimentação inusitada o rodeava.
Feras circulavam sem peias. Mansas, porém grandes e peludas. Um leão, um tigre, um elefante que parecia um mamute, um avestruz (que não era exatamente uma fera para os outros, mas pra ele....).
Um palhaço se aproximou:
- Tá precisando de um lugar pra dormir?
- Ah, sim. Obrigado. Eu preciso pelo menos de uma noite para prosseguir.
- Sem problemas. Moro só naquele trailer desde que minha amada foi assassinada por um maníaco. Mas é bastante aconchegante. Tudo bem?
- Já dormi em lugares piores.
- Certo. Meu nome é José. O seu...
- Epaminondas. Pode me chamar de Nondinho. Meus amigos me chamam assim.
- Tá bom, Nondinho. - Estendeu-lhe a mão.
Chegando ao trailer, Nondinho (fiquemos íntimos logo dele) arrumou sua mala num cantinho. Conferiu suas roupas, pegou um sabonete, já no fim, sua calça jeans de todas as horas, uma camisa lisa vermelha, e decidiu tomar um banho no rio antes de dormir.
Quando estava nadando, estranhou uma movimentação no fundo. Puxou ar e mergulhou. O que viu não permitiu racionalização. Uma moça estava amarrada a uma pedra e se debatia. Num instante, ele, que já fora bom em quase todos os esportes, possuidor de algumas medalhas e jornais que o louvavam, livrou a moça, levando-a à superfície. Fez respiração boca a boca, como convinha e a moça deu um suspiro profundo, revivendo.
Olhou à volta e notou que o circo havia desaparecido. Não entendeu o que acontecia. Levantou-se, esfregou os olhos e, por um momento, pareceu-lhe ver uma das feras, e o trailer. Mas foi só por um momento.
Ouviu um barulho e olhou na direção do mesmo. Para sua surpresa, o palhaço que o hospedara se aproximava, tirando um espelhinho de um saquinho na cintura.
- Nondinho, você hoje me fez feliz.
- O que você quer...
- Quero dizer que você finalmente nos libertou.
- Como assi....
- Tenho o prazer de lhe apresentar minha amada Lídia, reanimada por você.
Quando ele olhou pra ela, um esqueleto de pé com um vestido antigo lhe sorria.
Quando Nondinho voltou o olhar para José, este era agora um esqueleto, que estendia-lhe um espelhinho.
Nondinho pegou o espelho rapidamente pra ver se....não, ele não era um esqueleto, mas, sim, ele estava sangrando. Na certa, ferira-se no rio. Pensou no vampiro brasileiro de Chico Anísio.
José pegou nas mãos ossudas de Lídia, olhou-a e se dirigiu a Nondinho.
- Quer saber por que está sangrando?
- Por quê?
- Porque está morrendo. No mundo dos mortos desta região, todos sabem das crianças e moças que você violou e matou. Minha Lídia foi a primeira.
Do rio, vinham vozes: "você nos matou bem longe de mamãe, você nos matou bem longe de papai".
Nondinho olhou e viu dezenas de crianças boiando no rio. De súbito, uma grande quantidade de lama se eleva do rio e o cobre, qual um tsunami negro e fétido. Um redemoinho se forma e o traga para o abismo infernal.
Enquanto somem no ar, ficam José e Lídia a dançarem inaudível canção, cantada pelas corredeiras do rio, orquestrada por grilos e insetos e estranhos pássaros pretos.

sábado, 6 de setembro de 2014

SOMBRAS SOBRE ALMAS



Antonio estava ali há muito tempo. Não incomodava ninguém. Viveu naquela chácara luxuosa desde o nascimento, há vinte e cinco anos.
Até que....se apaixonou perdidamente por Arlete, a filha mais nova da costureira, a única daquelas bandas nesta profissão, conhecida como Dona Suzana, que falava mal, pois possuía a língua cortada. O avô de Antonio a conhecera em outros tempos.
Arlete era tarada, ou seja, gostava demais de seu bichinho de estimação, o Tyrone. Trazia-o sempre bem protegido. 
Quando não dava pra ela ficar perto de seu animalzinho, deixava-o trancado no quarto.
Um dia, Antonio necessitou que Dona Suzana costurasse uma de suas calças. Foi até lá. Quem o recebeu foi Arlete.
Serviu-lhe um cafezinho com bolachas. Bolachas das baratas, sem qualidade e sabor. Mas isso pouco importava. Ficara encantado com a beleza da filha da costureira. E a menina também sentiu uma atração por ele. 
Começou a visitar todos os dias a costureira, fazendo encomendas necessárias e desnecessárias, com olhos na filha, naturalmente.
Os fatos foram assumindo cada vez mais sua inevitabilidade. 
Com o tempo, noivou, casou, mudou-se com a mulher para uma casa em Paranapiacaba. 
Ela, claro, pediu pra levar seu bichinho. Antonio não se opôs, apesar de uma certa antipatia gratuita. Foi tolerando o que ele chamava de "hamster", embora o animal só fosse parecido com um. Arlete lhe colocou num canto da cozinha e foi deixando. 
O tempo foi transcorrendo. A rotina foi tomando assento. Até que...a mãe.....
Bem, fazendo um flashback: o avô de Antonio, Dr. Leônidas, foi até o pai de Suzana, quando esta tinha nove anos, e trocou-a por um cavalo manco. Levou-a pra uma casa pros lados de Santo André, e fez de tudo um pouco com ela. 
Contavam que tivera uma família para os lados de Cubatão. Mas dela só restava um filho, criado pela avó.
Nas relações sexuais com a menina, tinha uma tara estranha: gostava de enfiar na mesma objetos estranhos, geralmente legumes, que ele cozinhava depois e comia com grande apetite.
Tal qual a filha, a mãe também gostava de bichinhos de estimação. Só que de bichos mais perigosos. Geralmente, bichos que estavam morrendo. Ela ia até eles e os melhorava com a imposição das mãos, dom inexplicável que se manifestara desde a mais tenra idade. 
A partir das curas, ganhou um respeito inusitado da Mãe Natureza.
Quando completou doze anos, Dr. Leônidas pegou-a e levou-a para o fundo de uma mata próxima, onde havia uma cachoeira.
O que ele pensava fazer com ela? Matá-la? Teria encontrado uma menina mais nova que ela pra fazer outro escambo? Por que ele levou o machado?
Na verdade, todas essas suspeitas estavam certas.
Ele esperou que desse meia-noite. Amarrou  Suzana forte numa árvore e, abrindo a boca da menina à força, cortou parte de sua língua com uma faca amolada. Ela gritou, mas ele não parou, a não ser quando ela teve um desmaio. Foi quando o Dr. começou a afiar o machado.
Sentado numa pedra, não viu, não notou sombras de árvores se aproximando e o cobrindo. E, à medida que era envolvido, coisas estranhas iam acontecendo: foi ficando cada vez mais jovem, até que virou um bebê. Então ocorreu curiosa transformação: mudou de sexo. Ficou uma linda menina de cabelos ruivos como os da futura mãe adotiva. Sim, Suzana adotou a criança e deu-lhe o nome de Arlete.
Suzana ficara livre das cordas como por encanto. Porém, como seu coração não era totalmente puro, as sombras não devolveram-lhe parte da língua. 
Suzana tornou a menina praticamente uma escrava. Surrava-a constantemente. Chegou uma vez a amarrá-la numa árvore, porém não teve coragem de matá-la.
Quando converteu-se ao Racionalismo da Cruz, tratou de ocultar sua má inclinação. Tornou-se meiga e generosa. Começou a tratar Arlete com todos os desvelos. 
Viveu feliz com a filha, até que, quando já estava morando com ela e o genro, morreu, sendo, em suas últimas horas, envolvida por estranhas sombras, que avançaram por todas as janelas, portas, e brechas. Ampararam Suzana como anjos de algum paraíso abandonado, que as recebeu com um sorriso beatífico em seu rosto.
Foi quando Arlete e Antonio completaram um ano de casados. Ou mais ou menos isso.
Arlete ficou estranha. Lembrou-se que sua mãe dissera que fora o avô do marido quem cortou parte de sua língua. Sua mãe contou-lhe quando Antonio levou as alianças de noivado. Ele providenciou para que velório e enterro saíssem a contento, de modo que sua amada não se estressasse desnecessariamente.
O dia do enterro foi um dia cansativo. Sua esposa tivera um ligeiro problema de pressão baixa e fora levada pra casa pela prima, que aliás era enfermeira. 
Arlete, recuperada instantaneamente, foi à cozinha e alimentou Tyrone. O relógio mostrava que era meia-noite em ponto o momento em que a boquinha do bicho devorou o queijo que ela dera.
Antonio não teve remédio a não ser ficar no cemitério até que o enterro se desse. Após o enterro,  despediu-se de todos e voltou pra casa.
Chegou em casa, e não sentiu o cheiro de carne morta, nem o cheiro de sangue humano. Foi à cozinha, pegou uma chaleira das antigas e encheu-a de água. Enquanto fazia isso, deu uma olhada com insano ódio para o animalzinho de Arlete. Ele estava ligeiramente maior, fora da gaiola, e dormindo. No entanto, o ódio súbito que lhe viera do bicho enevoou-lhe o juízo, impossibilitando a Antonio equilibrada avaliação de diferenças. 
Desejou esmagá-lo. Lançou mão da chaleira, antes de ferver, e deu um banho em Tyrone. Então, estranhamente, iniciou na pele do "serzinho" uma espécie de fervura de água fria. Tyrone não acordou, mas começaram a brotar bolas de pelo em suas costas. E cada uma delas dava origem a um "hamster" travesso. Os animaizinhos se libertaram da gaiola facilmente e começaram a montar em tudo que era móvel da casa. Começaram a quebrar coisas, a derramar líquidos, enfim, a fazer tudo que dizem que um saci e uma criança travessa faz.
Antonio sentiu uma dor no coração e caiu. Arlete, toda melada de sangue, apareceu.
Chegou perto de sua orelha direita, deu um grito tão lancinante que parecia saído de um filme de terror do Zé do Caixão. Depois lhe disse, sadicamente:
- Teu avô cortou a língua de minha mãe!
Porém, Arlete não notou o hálito de Tyrone, que não resistiu ao aroma da carne da "sua dona", ao contrário do protagonista de Crepúsculo. O bichinho tratou logo de comer os dois.
Como forma de acabar com o mal que ali se instalara, as sombras, após o fato trágico ocorrido,  surgiram e, de forma rápida, cobriram todo o vale, fazendo com que só a natureza ficasse, sobranceira, sobre tudo, varrendo todo o traço de humanidade e do mal que esta atraía.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

TERROR DE MÚSICA


De onde estava vindo aquela música?

Saiu de casa para olhar e viu a música avançar na sua direção juntamente com uma sombra.

Avançava tão lentamente. E ele estava tão bêbado.

A música ia matando pelo caminho, isso ele percebeu. Todos iam morrendo em êxtase. Viu seu cachorro ser tragado. O filho. A filha. A mulher. A mãe. O pai.

Nas ele não queria morrer. Mesmo em êxtase. Mesmo bêbado.

Foi até seu carro. Pegou um atalho para a estrada marginal que o levaria pra bem longe daquela cidade.

Num cruzamento de rodovias, percebeu que não tinha gasolina suficiente para ir muito longe.

Sorte que sabia onde tinha um posto perto dali.

Apalpou o bolso com medo de não estar com o cartão de crédito.

Não estava no bolso da camisa. Verificou o bolso direito da calça. Estava lá. Ufa.

Pediu pra encherem o tanque. Queria avisar sobre a música que chegava. Mas tinha medo que um pânico eventual paralisasse o trânsito.

Ele, que antes adorava música, deixava nascer em si uma fobia instantânea quanto a sons. Arrancou o aparelho de som do carro com toda a fúria. Ninguém no posto entendeu.

E estava tão bêbado. Será que a música o pegaria antes de rolar em um barranco?

Outras músicas se faziam ouvir adiante. Como distinguir a música à frente da música mortal atrás de si?

UM ERRO EXPLOSIVO


Eles achavam que estavam fazendo justiça. Trazia ele na mão direita uma sacola.
Quando a primeira linchadora disse "é o assassino", todos iam acreditando.
Dois pularam sobre ele, pegaram seus braços e arrancaram.
Outros arrancaram todos os seus cabelos, após estupro coletivo.
Os que chegaram um pouco mais atrasados arrancaram-lhe as pernas.
Depois foram se juntando mais pessoas.
Quando por fim a vítima estava desconstruída em sua dignidade e corpo e talvez alma, pararam para observar.
Aquela pessoa não era ele. Nem sequer se parecia com ele.
Começaram a colar os membros de novo no tronco.
A cabeça haviam jogado nas margens do rio. Sorte que ainda estava lá. Encaixaram a cabeça. Limparam bem o corpo. Só não tinham certeza quanto à alma.
Quando ele levantou, pegou na sacola um pacote e um controle.
Sorriu, como para uma fotografia. Apertou uma tecla pequena e explodiu tudo num raio de quatro quilômetros.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

DESENHOS MORTAIS



Chegaram no dia anterior ao dia dos mortos. Já era a décima terceira casa para a qual aquela família, de treze pessoas, se transferia. 
A família era composta por um casal, Suetônio e Jacira, e por suas 13 filhas, que completaram no dia em que chegaram à nova residência a idade de 13 anos. 
Suetônio era um monstro. Mas ninguém desconfiava do que fazia com as filhas, toda noite. A mãe, Jacira, só pensava em se matar. Mas esse era o limiar de sua manifestação sobre o malfadado ato. Não fazia mais nada. Não agia, só pensava.
Antes de mudar, o casal estudava os terrenos para saber se haviam sido no passado cemitérios indígenas. E então se mudavam.
O fato insólito que ocorria era que nos pisos das casas que alugavam, desde o primeiro dia de mudança, começavam a aparecer retratos das pessoas cujos ossos estavam sob a casa.
Tudo começou quando as filhas completaram dez anos de idade.
Cientistas e outros especialistas e místicos tentaram esclarecer a questão. Por que só nas casas em que aquela família se instalava tal fenômeno acontecia? Tentaram ver se aquelas pinturas podiam ser produzidas por alguém da família. Constataram que não. E o mistério continuou.
A casa passava a funcionar como uma atração turística, vivendo a família do valor que cada visitante pagava, correspondente a uma entrada de cinema. 
Interessante é que toda a família se mobilizava nos cômodos, fiscalizando e guiando.
Isaura, a filha mais esperta, teve uma idéia genial. Como era hábil desenhista, decidiu que iria passar todas as figuras dos pisos dos cômodos para telas a óleo. Comprou telas e tintas e colocou mãos à obra.
Amália, a irmã menos esperta, queria ajudar, mas Isaura achava ela frágil demais, apesar dela possuir um talento que superava o da irmã até, para o desenho de rostos.
Quando Isaura desenhou a última figura, era noite e estava tão cansada que dormiu no canto daquele cômodo ao fim do casarão.
Dormiu o sono dos justos e injustos durante três dias. No momento em que acordou, numa madrugada qualquer, enxergou no piso do cômodo toda a sua família desenhada.
Correu toda a casa e não achou ninguém. Ficou desesperada. No intuito de resolver o enigma, começou a pintar telas, retratando cada membro da família. Pensou que assim poderia lhes ressuscitar, tirá-los daquela espécie de morte. Esperou dias e dias, fechou a casa às visitas, ficou sem tomar banho, e nada sucedeu. Até que teve uma idéia: desenhar a si mesma também numa tela. De repente, a família toda nas telas era a chave.
Depois de duas horas, completou o trabalho. Fatigada,  dormiu na frente da tela que pintara.
Quando acordou, viu o milagre acontecer. Todos reviveram de novo...menos seu pai, que continuou a ser uma vívida pintura a óleo, ladeado de duas figuras estranhas. Os que miravam-lhe a tela tinham a impressão de vê-lo movimentando o nariz para espantar intrometida mosca ou eventual coceira.
Isaura e Amália, vez em quando, retocavam-lhe a pintura, e passaram a entortar-lhe o rosto sadicamente, principalmente depois que notaram pelos seus olhos pintados a intensa dor que sentia. Jacira sorria beatificamente.

Bosch  -  Cristo Carregando a Cruz

terça-feira, 2 de setembro de 2014

AMOR MORTAL MORTE IMORTAL



Maria estava tonta. O que acontecera? O que teria bebido, comido? Resolveu pensar em outra coisa, talvez mais importante. Precisava ver como ele estava. 
Ontem, ela fora muito má com ele. Pegou um táxi e foi até o apartamento dele, no centro de Cubatão.
Quando estava saindo do táxi, uma bicicleta esbarrou nela e atravessou seu braço.
- Seu fdp! Olha pra onde tá indo, viado!
Ela se recompôs. Passou a mão no joelho e conferiu se era ali mesmo onde devia ter descido. Seguiu até o apartamento de Márcio, no primeiro andar.
Ela chegou e foi entrando. Estranhou. A porta estava encostada. Ele foi se levantando detrás do sofá.
- Você está bem? - ela pergunta.
- Acho que...sim, tou...E então? Gostou dos bombons?
- Gostei.
- Caseiros. Fiz especialmente pra você.
- Não sabia que você era prendado assim?
- Estou começando um curso de cozinha aí.
- Parabéns!
- Quer um vinho?
- Aceito. É de marca, né?
- Não, é de garrafão. Claro que é de marca.
Traz uma taça e serve o vinho a ela.
- Essa bebida é divina.
- Divinamente dionisíaca.
- Ela não existe de verdade. Criei por força mental. Olha.
A taça de vinho se transformou numa flor.
- Você tá em algum curso de magia também.
- Aumentou a força do meu pensamento, como em Ghost.
Dá pra transformar em vinho de novo?
- Dá, mas não vou fazer.
- Você não quer é ser desmascarado.
- Adivinhou.
- Tá chato por quê?
- Você sabe.
- Tou pensando muito em você. Como que cê vai ficar sem mim.
- Tá preocupada comigo. Que legal.
- Não brinca.  Você sempre foi a parte mais dependente desta relação.
- Quer dizer que só eu levei a sério, né?
- Como eu te falei ontem. Aconteceu. Conheci outra pessoa.
- Sei.
- Desde que te contei ontem, me sinto mal. Não quero te perder, apesar de.....
- Amar a outro.
- Estou a ponto de desabar. Eu não entendo por que não deu certo. Só sei que perdi...o sentimento....a gente foi seguindo e...
- E você encontrou esse cara. Ou essa cara.
- É homem. Nunca fui chegada a sapata.
- Mas e se acontecesse?
- Nunca.
- Você não tá notando nada?
- Não.
- Deixa eu te explicar. Quando te dei os bombons, você guardou-os na bolsa e depois me falou que...tudo aquilo...fiquei arrasado e corri até o rio....Na verdade, te acompanho desde ontem.
- Me seguindo? Isso é doentio. Acho que não posso nem ser sua amiga. Tudo tá muito recente. Deixa eu ir embora...
Ele se coloca na frente dela.
- Calma. Preciso terminar. Hoje eu vi tudo que você fez desde que acordou...
- Como, se eu não notei nada....
- Agora, eu sou um espírito. Quando corri até o rio e me atirei, o desenlace entre a alma e o corpo foi mais rápido que eu pensei. Aí foi que eu pensei nos bombons que eu te dei. Me arrependi, mas era tarde. 
- Como?
- Quando você me confessou ontem, eu já sabia. Ele, o seu novo amor, veio me falar um dia antes de você me confessar. 
- O que tem os bombons?
- Depois que ele se foi, já tinha feito um plano. Saí para comprar uns bombons e fui até um xamã que conheço em busca de um veneno, que ele já tinha me mostrado, bastante usado por sua tribo. Eu só tinha em mente morrer junto com você. Comeríamos os bombons e...
- Espera, não pode ser. 
- Pode sim. Você, quando você pegou o táxi e se sentou, tirou dois bombons da bolsa e praticamente os engoliu, tamanha a sua fome. Para entrar em convulsão e morrer, foi quase que imediato. Um veneno muito poderoso, desconhecido dos toxicólogos. 
- Por isso que a...bicicleta atravessou...
- Seu braço. 
- Você me matou! Você chama isso de amor?
- É. Quer dizer: foi. O que me chateia é que ainda não encontraram meu corpo no rio...Mas é uma questão de tempo. Deve estar bastante verde e inchado, não acha?

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

PERDIÇÃO DE AMOR


Josildo era um homem que sofria constantes gozações.
No serviço. Na escola. No caminho da escola até sua casa. Enfim, em quase todo luga onde aparecia.
Ele não tinha paz. Também quem mandou? Colocara em sua cabeça aos trinta anos que as melhores mulheres eram as de alma calada. Foi quando resolveu comprar sete delas. As bonecas infláveis passaram a ser, na sua concepção, o modelo do sexo feminino. Não ficavam chatas na pré-menstruação. Respeitavam seu desejo de silêncio. Não tinha que disputar com elas o controle da TV, entre outras vantagens.
Porém, os vizinhos não deixavam-no em paz. Escreviam coisas horríveis em sua porta. Era só ouvirem seus uivos na hora do amor com as caladas que começavam a gargalhar do absurdo da situação.
Resolvera mudar-se. Pegou suas sete bonecas, algumas roupas, os poucos móveis e se mandou para um lugar bem isolado.
Esperou dois dias depois da mudança e solicitou sua aposentadoria.
Foi quando viveu os momentos mais felizes com suas mulheres.
Mas como toda relação onde há mais fala sexual que de almas, um dia ele resolveu romper as amarras e pedir divórcio, ou seja, impor.
O que lhe ajudou a reforçar tal atitude foi o sentimento de amor que começou a nutrir por Matilde, que era tetraplégica.
Mudou de idéia quanto à mulher ideal. Agora, sim, encontrara a mulher perfeita.
Quando foi pegar as sete bonecas, elas tinham sumido. Deduziu que alguém as tinha roubado.
Chamou Matilde para morar com ele. Ela aceitou. Cuidava dela com extremo carinho. Ela nunca recebera tanto amor. Mesmo de seus pais que eram excessivos em seus cuidados.
Porém, numa noite de grande geada, em que no mundo sombrio se costumava comemorar a noite de Despina, deusa das sombras, algo estranho aconteceu. Acordou de súbito, mas só suas retinas brilhavam. Os olhos não mexiam. Sua pele....emborrachada. E Matilde? Continuou de carne e osso, mas teve de presenciar tudo. Lia-se em seus olhos extremo pavor. 
Então, apareceram uma a uma as mulheres desprezadas de Josildo. No entanto, eram agora de carne e osso. Teriam agora uma nova vida. Um presente de Despina, que também foi rejeitada, quando sua mãe Deméter só pensava em achar Perséfone, que fora raptada por Hades. Se Despina não fosse adotada pelo titã Anitos, morreria no abandono.
Uma das ex-infláveis, calmamente, foi até o fogão e abriu o gás. Outra tampou todas frestas, fechou portas e janelas.
Após olharem-no uma última vez, saíram, mas antes cada uma delas deu um beijo nele por gratidão a todo o tempo em que lhes dedicou amor sincero.
Um pouco antes da casa ser inteiramente consumida, só brilhava, rodeado de sombras, no meio do que antes foi a sala, o crânio de Matilda, como uma abóbora americana de dia das bruxas.