domingo, 31 de agosto de 2014

DEIXA UM BRAÇO PRA MIM, BEBÊ


Daniela nascera naquela casa rústica, ao centro daquele sítio abandonado, localizado nos Areais. O local era despido de quaisquer condições de higiene e humanidade.
Havia uma quantidade imensa de mato, árvores, sombras, grutas, insetos e bichos desconhecidos. Para o homem - caos desnaturado, para a natureza - ordem natural.
Seus pais escolheram aquele local por ser bem distante da cidade.
Parece que o pai tivera um problema com a lei. Diziam uns que matara uma família inteira em nome da honra...Que honra justificaria isso? Outros que a esposa era enfermeira ilegal, procurada pela polícia, e tinha em seu currículo abortos sem conta. Quem sabe, as duas versões eram verdadeiras. Pois ela tinha o hábito esquisito de só andar com trajes de enfermeira, onde quer que estivesse, em casa, na rua, em festas, na cama, na vida real, na vida dos sonhos, pesadelos, etc. etc. 
Antes de ir para o sítio, descobrira que era portadora de uma doença que lhe dava pouco tempo de vida. Andava, a poder de muletas e se cansava muito fácil. Os médicos tinham dito que duraria um ano, se tanto. Logo que engravidasse, ficaria mais débil e mais perto do fim.
Quando Daniela nasceu, os pais se espantaram com a forma de seus braços e de suas pernas. Chegaram à conclusão que estavam recebendo um castigo divino. O pai resolveu pagar a sua parte do castigo. Voltou à cidade e se entregou às autoridades.
Irresponsavelmente, porém o pai resolveu deixar a criança ali com a mãe, que, na sua maneira de pensar, era a culpada da filha ter nascido um monstro, estava amaldiçoada. Iria arranjar outra mulher que tivesse mais saúde. E certamente teria filhos mais saudáveis. Contava que mãe e filha morressem e, assim, sumisse o vestígio de sua culpa.
Mas na cadeia teve problemas de consciência e findou que tornou-se evangélico. Uma liderança pastoral entre os internos. Quando cumpriu a pena, se arrependeu enormemente dos atos do passado. Pensava muito em sua filhinha. Mais até do que na mãe dela. O abandono não foi coisa de espírito ajuizado. Foi mesmo uma coisa desumana.
Pegou sua segunda esposa e voltou àquele sítio abandonado. Se viva, sua filhinha teria uns quinze anos de idade. Sua primeira esposa, pela doença que tinha, devia ter morrido.
Sua segunda esposa achava que a filha também estava morta, no entanto, o esposo tinha esperança de que ela estava viva.
Quando chegaram ao sítio, ele notou uma mudança fenomenal: árvores cercavam a casa, como formando um muro de proteção. A casa estava jeitosa, com suas trepadeiras e flores. Havia até mesmo um jardim com as flores mais inusitadas, até carnívoras.
Mal ultrapassaram os limites do quintal, o solo deu um leve tremor, sorrateiramente, as árvores agarraram os pés do casal com seus galhos longos e raízes emaranhadas. Então, começaram a arrancar seus membros, troncos e cabeças, colocando as partes num canto protegido de sol e chuva.
Daniela, sentindo o cheiro, saiu da casa e foi se aproximando das carnes em retalho. Suas patas de javali eram fortes e rápidos. Seu rosto porém tinha uma delicadeza ímpar, uma meiguice angelical.
Quando abriu a boca, a comer os pedaços humanos, nunca imaginaria que certos pedaços pertenciam a seu pai, senão...talvez até não engolisse assim tão deseducadamente, ou.....talvez nem fizesse diferença.
Um berro feminino do interior da casa:
- Dani, deixa um braço pra mim, bebê! Cê sabe que eu só como isso, não gosto de perna nem de cabeça!

sábado, 30 de agosto de 2014

O CORPO DA BANHEIRA


Aquele corpo sempre aparecia naquela banheira.
Bastava ele enchê-la.
Desde que se mudara, acontecia aquele fenômeno.
Ele, de início, tivera medo.
Pensara estar vendo coisas.
Deixou o LSD, a cocaína, a maconha, o absinto, o cigarro e abandonara até o hábito de beber perfumes da mãe.
Mas o corpo continuou a aparecer, a cada vez que ele se preparava pra tomar banho. Também! Continuava com o maldito hábito de riscar as unhas na banheira.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

CHOPIN NO NECROTÉRIO


Quando tomou os comprimidos, não imaginou que acordaria daquele modo e naquele lugar.
Estava deitada no necrotério, silente, numa mesa fria.
Não conseguia mexer senão os olhos. 
Notou que estava nua pois tinham colocado um travesseiro alto sob sua cabeça.
Ele veio também nu em sua direção.
Seu membro viril pequeno e erguido.
Armado de paixão.
Nesse momento, desejou ser um esqueleto de dedos ossudos em riste para uma vingança.
Tocava num celular próximo o Noturno de Chopin - Op. 9 nº 2.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

VIAGEM ENCANTADA



Ela estava ali, naquele lugar, sozinha, sorrindo, uma bela moça com um vestido simples, as coxas à mostra, cabelos pretos, olhos grandes, seios médios, colar de contas coloridas, brincos de estrela, um cheiro de....um cheiro de...Por que a única expressão que lhe ocorria era....um cheiro de....morte?
A idade dela lembrou a Armindo Poento a que tinha Ju, sua mais adorada, quando morreu....Júlia, aquela com a qual se juntara de corpo e alma....um pouco menos de alma e....o fato é que ele terminara com ela, indo direto ao assunto, empurrando-a num poço abandonado, que acabou sendo soterrado, para sua sorte, numa enchente inesperada.
Aconteceu naquela cidadezinha do Sul, cujo nome é tão sumidinho que a gente acaba esquecendo. 
Ninguém esclareceu o desaparecimento da moça.
Ele fora, depois disso, para o Centro-Oeste. Depois, para o Sudeste. Passado um tempo, recomeçou a beber. E quando bebia era muito agressivo...mas só com os mais fracos que ele. Gostava mesmo era de maltratar as mulheres que namorava. 
Passado algum tempo, ingressou numa Igreja, mais com o intuito de impressionar a filha do pastor Ubiratã do que de abraçar uma fé sincera. Até conseguiu acalmar seus nervos, mas não obteve a prenda perseguida. Um primo dela, o Agenor, foi mais rápido.
Começou então, por inveja, e por maldade, a tramar a morte do tal primo. Nessa ocasião, começou a cheirar mais. A cheirar e a se encher de maconha. De uma maneira descontrolada. 
O interessante é que achavam que quando seus olhos estavam vermelhos e ele tinha aquela larica era o sinal de que o Espírito Santo estava dentro de si.
O primo da moça tinha uma fraqueza no passado. Quando Armindo descobriu, tratou de procurar um botãozinho que a reativasse.
Numa festa da igreja, em que comemoravam o primeiro ano de fundação da mesma, Armindo se aproximou pela primeira vez do outro. Ocorreu que em três anos já estavam carne e unha. Melhores amigos.
E foi justamente com três anos dessa amizade que Agenor....morreu. Fora atravessar a rua e um caminhão - "push" - atropelou-o. Foi por acaso, fugindo ao planejamento do "amigo".
Mas....Ju, por puro desgosto, também terminou morrendo e Armindo, coitado, ficou na mão.
Ele gozava de uma consideração muito grande na comunidade. Era um excelente profissional das artes gráficas e cenográficas. Tinha até um enorme ateliê no centro. 
Aos poucos, fora se afastando da igreja e deixando de lado seu comportamento sádico. A desculpa que dava para o auto-isolamento era sua entrega à profissão. E realmente se enfiou no trabalho. Cinco anos e pouco sem tirar férias.
Resolveu então, certo dia de natal, tirar um final de semana para viajar até Aquele Lugar. Aquele Lugar havia sido uma Sociedade Alternativa nos anos sessenta. Armindo pegou um ônibus e foi. Demorou umas seis horas a viagem. Quando divisou uma placa onde estava escrito "Aquele Lugar a 200 metros", ficou aliviado.
Todos falavam desse tal lugar onde os carros subiam sozinhos as ladeiras, sem precisar de ligar o motor; comentavam das casas em que se ouviam alienígenas fumando baseado, viam-se discos voadores do tamanho de moscas, enxergavam-se centauros viciados em LSD, e hidras sem-vergonhas que riam sem parar dos anjos-palhaços.
E o mais fabuloso mistério estava naquela caverna, na entrada da cidade.
No dia do show do Grande Cantor, que começaria logo mais, nada lhe era mais importante do que aquela moça, que sorria sem parar, tão linda, tão linda, tão....Quando olhou-a, uma paixão tão ardente lhe pegou que tomou uma decisão: não voltaria mais pra sua cidade. Ali seria o seu paraíso de amor.
Quando chegara n'Aquele Lugar, tentou tirar proveito de tudo, principalmente, gostava de observar as pessoas dos bares e inferninhos, mas sempre calado, pois tinha dificuldade de comunicação com as pessoas.
Foi àquela caverna impulsionado por curiosidade. Diziam que ali muita gente morreu de combustão espontânea. Essa história lhe atraiu. E....na entrada da caverna, encontrara aquela moça. Como ela dava risada. Sem parar. Era muito estranho. Devia estar cheia de erva. Mas não devia ser maconha. Os efeitos ridentes eram quase sobre-humanos.
Ele perguntou-lhe: - Você vive aqui? Ou tá de visita como eu?
Ela: - Não, eu morri há seis meses isolada nessa caverna. 
- Mo...morreu?
- Sim. Mo...morri. E desde que morri, gosto de presenciar acidentes. Fiz questão de estar presente no seu acidente de ônibus. Lembra? Você morreu nele.
Ele gaguejou: - Ju...Ju...Júlia?
- Que Júlia o quê? Sou apenas uma morta que gosta de ver os corpos morrendo e as almas desprendendo. Um pequeno vício, sabe. Dá mais barato que maconha. Você devia experimentar.
Bem, o fato é quase ele morreu uma segunda vez. Foi assim mesmo. Foi. De outra forma não. Tenho boa memória. Claro.

domingo, 24 de agosto de 2014

DISTORÇÕES NO ESPELHO-COVA


O coveiro, conhecido pelo apelido de Banguela, acordava geralmente bem tarde para que durante a madrugada tivesse bastante energia para seu trabalho secreto.
À uma e pouco, ia do Cemitério da Vila Elizabeth até aquela chácara abandonada, que ficava bem longe do mesmo, onde havia uma grande piscina.
A velha Juciléia lhe pagava por cada viagem que ele fazia.
Um dia, em seu terceiro transporte, quase fora descoberto. 
O cachorro do Zebedeu tinha se soltado e danou a seguí-lo, latindo bem alto. Sorte que o Zumbi, assim chamavam o filho da velha, se livrou dele. Claro que perdeu duas orelhas e um pedaço do braço nessa empreitada.
Banguela não, Estevão é o meu nome, costumava responder aos que insistiam em gritar bem alto seu apelido.
Ele marcava, não esquecia o rosto dos que lhe zombavam. Porque sempre que lhe chamavam pelo apelido, lhe chasqueavam. Costumava, em vingança, mexer nos túmulos dos parentes dos zombeteiros e tirar pedaços de orelha, nariz, mamilos, ou outras coisas quase impublicáveis. Todas essas partes ele colocava em envelopes para enviar um dia ao endereço dos e das idiotas.
Em determinada madrugada, em que umas dezenas de pessoas ainda estavam nas ruas, após louvarem Iemanjá, o Fuinha Preguiça, filho da Dona Engrácia dos Salgados, o seguiu. Empurrando um carrinho de mão com algum objeto enrolado, Estevão Banguela seguia, respirando com dificuldade, parando vez em quando, para limpar o suor da testa ou tirar a água dos joelhos.
Fuinha não sentia no físico as torturas da distância, era um touro de saúde, forte, rápido, um verdadeiro atleta, jogava futebol no time da cidade, participava das maratonas anuais, tinha uma resistência inigualável.
Depois de umas três horas, Banguela chegou à chácara, que ficava do outro lado da cidade. Na entrada da chácara, havia uma piscina, na beira da qual o coveiro parou. Quando apoiou o carrinho, o objeto enrolado caiu e Fuinha viu, estarrecido, o que estava escondido. Ficou de cabelos em pé. Ou de pé nos cabelos.
Era a cabeça de Dona Jurema que ele viu. Ela morrera há uns três dias, por motivos ignorados. Ultimamente, na cidade estava havendo muita morte inexplicável.
Banguela desembrulhou o corpo da mulher um pouco mais e no centro da piscina fez-se um rodamoinho como na história de Ulisses, o grego esperto, do qual nenhum dos dois ouvira falar.
Jurema foi sugada até o centro da piscina como a gente suga o que restou num copo de suco, geralmente com grande intensidade de sucção.
Mal Fuinha se virou, uma pancada atingiu-lhe o quengo, vinda de uma mulher com asas na boca. Quando acordou do desmaio, estava na beira da piscina, transformado num porco. Ao seu lado, Zumbi salivava, pois, adorava carne de suíno.
A piscina ficou cada vez mais vermelha do sangue das inúmeras vítimas trazidas e um grande espelho veio à superfície. Nele viam-se imagens distorcidas pela água e pelo sangue.
Apareceram então, disfarçados com capuzes, surgidos do entorno, vários políticos e endinheirados da região.
A velha Juciléia, que estava com uma asa de frango na boca, cuspiu-a no jardim próximo e começou a, com base nas figuras que surdiam no espelho, desfiar suas previsões, que poderiam ou não favorecer o caminho dos que estavam ali presentes.....menos do porco.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

EVERESSING DE KRISTO



Everissing sempre subia naquele prédio abandonado, cantava e se equilibrava, ao sabor dos ventos, no parapeito da sacada do seu 13º andar, em todo 13 de agosto. Já há cinco anos fazia isto. Como ele conseguia usar o elevador de serviço, se.....?
Não tinha os dois braços, nem as duas pernas. Não fosse Kristo, seu cãozinho verde....não se sabe o que seria dele na maior parte das atividades diuturnas.
Todos se perguntavam, quando o viam a colear por entre os espaços:
"Como se aliviava do ataque dos cocôs? Como tirava a água do joelho? Como fumava sem mãos, já que sempre estava com um cigarro ou guimba à boca? Como fazia amor ou, aqui entre nós, como fodia? Fodia gostoso? Rolava no corpo da amada como um pneu até atingir a fenda perseguida com o fuso pleno de veias? Era dotado, e, deitando, como puxava a coberta doada por aquela senhora doida de caridade e libido?".
D'xa pra lá. Voltando ao assunto, pra criar coragem, quando subia ao prédio, levava sempre seu cachorrinho.
Fora, mesmo com sua deficiência, um carpinteiro qualificado, pastor e professor de Física na juventude.
Dominava o Inglês, o Francês, escrevia e cantava como ninguém, pintava, fazia a barba, como aquele Príncipe Randian....tem um filme no youtube, de nome "Freaks", da década de 30, em que se pode vê-lo. Era filho de escravos britânicos esse príncipe, e era casado com Sarah, sua eterna princesa.
Hoje, vive a andar pelas ruas.......como anda? Ele é bastante eficiente em se deslocar, movendo quadris e ombros, como um réptil recém-nascido.
Quando começou a viver por entre as nuvens de pó das ruas, passou a beber de tudo, até água de poça de chuva, se misturada a algum tipo de álcool, mesmo que fosse de álcool desinfetante.
O que o levou a trocar de vida? Ninguém sabe...ou melhor, talvez Kristo Rex saiba. O cachorrinho está com ele desde seus primeiros avanços nos becos pestilentos.
Diziam que aquela data, 13 de agosto, devia ter alguma coisa a ver com a mudança de vida.
Será que uma esposa, um filho seu, uma mãe, um pai, ou até mesmo ele, se atirara do 13º andar de algum edifício ou daquele prédio abandonado?
Comentam que ele era casado com Zulmira, filha de pastor no bairro da Vila Nova. Teve com ela 10 filhos....mas essa não morreu, está vivinha da silva, casada com Setembrino, um fedido e obeso branco de más ações que trabalha no porto de Santos.
Kristo sempre estava a postos para o que pedisse seu dono. Às vezes, Everissing subia naquela estátua do Largo do Sapo e pregava aos invisíveis e visíveis. Gostava também de ler os Salmos aos transeuntes, principalmente o de número 22.
Um mendigo antigo nas ruas, o Conrado, diz que Zulmira não foi o amor da vida de Everissing e, sim, Carolina, filha de um padre viciado em revistinhas proibidas. Ela morrera naquele acidente feio no centro, quando caiu um helicóptero no meio de um prédio, no começo da avenida nove, justamente quando Carolina olhava a cidade com olhos fechados e os cotovelos postos no parapeito daquele prédio. Só um, que estava com ela, se salvou: ele.
Ele amava Zulmira e Carolina. E esta amava o Brancão, obeso e fedido, levantador de copo de chopp, mas amado como ninguém por Zulmira. Por ela, o estivador fora até capaz de emagrecer 200 gramas.
Kristo gostava de pegar bolinhas de papel que o dono jogava.

Quando Everissing chama seu cãozinho, todos olham, tal a potência do seu grito.
Kristo Rex só é bravo com quem procure humilhar seu dono, segundo este.
Uma vez mordera Preta, cadela invisível de Conrado, só por ela ter olhado rosnando para Everissing.
Sim, Kristo era um cachorro invisível, como as hordas de mendigos urbanos.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

ATUAÇÃO MORTAL

Quando mudaram para aquela casa, já sabiam. Teriam que conviver com um fantasma. O fantasma de Jussara, a florista.
Souberam do que lhe acontecera em detalhes.
Jussara, em seus últimos anos de vida, sofria de constantes depressões. Ela trabalhava no Hospital-Maternidade São Vicente como enfermeira, há vinte anos atrás. 
Não tinha muito caráter. Tinha prazer no sofrimento dos bebês e suas mães. No início, se divertia, embaralhando os recém-nascidos. Depois, costumava pegar alfinetes e enfiar os mesmos nos bracinhos das crianças.
Um dia, fora encontrada morta, com um bracinho de bebê a lhe apertar a garganta, naquela casa que eles, os Mendes, alugaram. 
Jussara lhes aparecia desde manhã. Ora estava no sofá olhando revistas antigas. Ora estava na cozinha mexendo nas panelas, tentando roubar cozidos e frituras.
Os Mendes fizeram consultas a todo o tipo de metapsíquicos, médiuns, físicos quânticos, psiquiatras, astrônomos, ginecologistas, padeiros, carpinteiros, pedreiros, etc. etc. etc. Mas....inútil todo tipo de esforço que tentavam.
Decidiram então, matar Jussara....Mas.....só fantasmas matam fantasmas, dizia a tia Sirleide. Os Mendes então resolveram se matar uns aos outros.
Esperaram ser promovidos ao grau de Fantasma Júnior. Destarte, foram atrás de Jussara.
Acontece que....Jussara....não estava morta e sim viva. Forjara a própria morte e fantasmagoria para se livrar de cobradores.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

MUITO AMADO

Em sua casa, reinava uma perfeita harmonia.
Era o único amante e o melhor amigo de sua mulher.
O melhor ponta-direita do time de veteranos do Clube da Igreja do Bom Sacrifício.
O melhor pai do mundo.
O mais premiado. Fora até xerife honorário.
O mais gentil.
O mais necessário.
O mais querido filho.
O mais querido irmão.
Por que então pregavam-no naquela cruz? Suas mãos e pés sangravam todo o sangue do mundo.
Debaixo de si, via seu filho mais velho abrir uma cova com todo o prazer do mundo. Assobiava uma canção antiga. Do filme Cabaré.
Sua mulher servia ao centurião um "Cabernet", vinho feito com uma casta de uvas chamada "cabernet sauvignon", da espécie "vitis vinifera", originária de "Bordeaux", sudoeste da França.
Toda a Igreja que ele ajudara a fundar estava presente.
Às duas horas da madrugada, tocaram os sinos.
Ele acordou por alguns segundos. Tudo fora um sonho. O coração doía, estava grande demais. Como os seus caninos.
Seu melhor amigo cravou-lhe a estaca, então.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

SKILO EXTRAINDO O CUSPE DE DEUS


Havia fregueses que chegavam às vinte horas no bar do Forgeron e três horas depois bandeavam pro bar do Wotan. E havia outros que faziam o inverso. Skilo não tinha regra. Um dia aportava num e, no outro, embicava no bar concorrente.
Skilo chegara no Wotan cabisbaixo. Quem notara primeiro a sua chegada foi o dono do bar que, naquela ocasião, estava demasiado atento a todo movimento. Skilo chegou e sentou junto à mesa do Cocada, outro que naquela noite estava pagando todas, pois, finalmente conquistara seu grande amor – Alexandra dos olhos de jabuticaba, a mulher de cinquenta mais linda daqueles arredores.
A razão de Wotan estar com atenção dobrada nas coisas era que, na noite anterior, surgiu no bar um grupo mal encarado que bebeu até as duas e não pagou. Claro que ele conseguiu a mobilização da polícia e recuperou metade do dinheiro devido, contudo, seguro morreu de velho e prometeu a si mesmo mais cuidado com seu negócio. Skilo era boa gente, segundo Wotan. Todavia, um cuidado extremo até com os amigos era bom de se ter de vez em quando. Porque os companheiros gostavam de abusar da generosidade de Skilo.
Skilo, como já disse há algum tempo, era um rapaz feliz, pelo menos por fora.  Sonhava ter cartazes com seu perfil nas paredes de dentro do bar do Wotan.  Umas fotos especiais, peito aberto e riso franco, mostrando todos os seus dentes, escovados com flúor todas as manhãs, tardes e noites. Ah, e um indefectível pandeiro nas mãos.
Queria ser como o pandeirista Tadeu Giovani, que faz fama desfilando em escolas de samba paulistanas, como a Vai-Vai, Gaviões, Pérola Negra, Águia de Ouro e outras. Seu desejo, em suma,  era superar Raul Seixas na preferência do dono. Adorava samba. E este ritmo era suficiente para lhe arrebatar todas as tristezas. Sim, ele tinha tristezas.Toda moça que ele amava, ou gostava de forró moderno ou de funk sem qualidade.  
Amar, para Skilo, era ter paixão com elo de eternidade. Amor não precisava de tempo. Amar é ao primeiro olhar. Dois dias bastavam para firmá-lo. Como amor de espírita, vindo de reinos de prata e reconhecidos em primeira energia, ponto. Detestava o termo sem elo que era o provisório se apaixonar. Ponto. Porém seu amor tinha uma gradação. Amava mais Lilitéia que as outras.
A falha de Lili era gostar de merda musical. Seria tão bom se as garotas que ele amava gostassem de músicas de qualidade. Até o rock ele toleraria.  Assim, tolerava o gosto de Jesus, o roqueiro. Não se declarava aos companheiros, mas apreciava rock do bom, com vocalista e instrumentistas de primeira. Gostava de olhar os bateristas. Aprendera a aplaudir a banda de trash metal de nome Slayers  por causa de um sobrinho, afilhado de Jesus. Se gostasse menos de samba e mais de rock, seria baterista qual um dos ex-bateristas da Slayers, o Dave Lombardo. Todavia, o pandeirista Tadeu era o seu ídolo máximo. A maneira com que ele dominava o instrumento era como ele amava Lili.
Gostava muito de samba e, particularmente, do de raiz. Mitificava Almir Guineto, Clara-Nunes-Guerreira-da-Utopia,  Jorge Aragão, Paulinho da Viola, Leci Brandão, Elizeth Cardoso, Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz,  etc. Dos novos, gostava de Fabiana Cozza, Mariana Aydar, Teresa Cristina, Lucinha Guerra e Roberta Sá,  e adorava Criolo, enfim,  o seduziam todos que reinam no Dourado Reino do Samba Que Deixa a Alma Bamba e Mulateada.
Skilo era tão sambista quanto Jesus era roqueiro. Se Jesus possuía todos os instrumentos de rock em todos os cômodos de sua casa, Skilo tinha os cartazes dos maiores sambistas, desde Ernesto dos Santos, o Donga, colados no lado de dentro de seu guarda-roupa e nas paredes internas seu barraco de um cômodo, incluindo o banheiro.
Cocada convidou Skilo para o bar do Forgeron, pois chegara no Wotan o ex – namorado de Alexandra dos olhos de jabuticaba, e ele não ia com a cara do sujeito. 
De súbito, Skilo confidenciou a Cocada, mal sentaram no  Forgeron, ou seja, no Fogueirão's Bar, como chamava o Haroldinho.
- Vou me cegar!
Alguém que ouvia gritou. Não sei se foi o Cabeludo ou o Ricardo.
- Olha o elo aí, gente! O elo do amor nos olhos eskilosos!
Jesus, o roqueiro, gritou:
- Nego, fala mais baixo, que senão tu me queima. Loucura aqui só a minha que é roqueira e dionisíaca!
- Eu tenho de me cegar! Só cego eu serei lúcido!
Skilo tentava explicar aos de ao redor seus porquês. Atualmente, amava três. Ano passado, amara cinco mulheres ao mesmo tempo. E estava cansado disso. Ontem, percebera a quantidade de energia que essa dispersão exigia.
- Mas decidi. Meu amor maior é por Lilitéia! Quero me cegar!
- Tu cheirou pó de aspirina? - indagou o Cabeludo.
- Não, quero cheirar só a Lili. Mas tou viciado nas outras. Entende?
Nisso, chega Estela, loira de cegar o Sol, e senta em seu colo. Skilo, enfastiado, leva ela pra um canto, conversa, com sua gesticulação exagerada, e ela se vai. Ela não chora, pois não era disso. No entanto, passa na sua frente várias vezes durante aquela noite, ladeada por diferentes machos.
Cocada sorri de modo discreto do desejo do outro.
- Cegar? Neguinho, tu está precisando é de uma surra. Passa lá em casa que lhe dou uma surra de baqueta de batera.
- Tu tá me tirando?
- Daqui há pouco, tou te tirando da mesa.
- Cocadinha, você conhece algum comprimido de glaucoma?
- Puta-que-o-pariu! Tu tá me enchendo com essa história!
Cocada se levanta, pega um cigarro e vai fumar lá fora. Skilo o segue.
- Escuta, escuta, deixa eu te explicar! É que, cego, posso amar Lili em toda sua essência. Só sentiria o seu cheiro. E meu amor seria só dela. Não notaria a beleza das outras. Sacou? Penso nela envelhecendo a meu lado e eu preso em suas malhas de ser. Amaria Lili em amor eterno.
Jesus, o roqueiro, se aproxima.
- Tá filósofo demais. Que droga tu usou?
- Tu sabe que só uso samba do bom assim como tu usa o rock.
- É, o rock que fumo é dos melhores!
- Assim como os sambas que eu cheiro!
- Essa sua história com a Lili. Vou ter que te contar...
- O quê?
- Não, vou ter que te mostrar! Mas vou ter que te cegar um pouco de tempo.
- Meu irmãozinho, isso é o que mais quero.
Jesus puxou um lenço do casaco e vendou os olhos do sambista.
Pediu o carro de Alex emprestado um tempinho. Todo mundo ali estranhou o fato dele meter o Skilo vendado dentro do automóvel.
Jesus levou o apaixonado duas ruas atrás daqueles bares. Foram na direção de um carro hermeticamente fechado. Tirou a venda dos olhos de Skilo.
- Seu carro aqui? Não tá muito distante?
- Eu aluguei pra um grupo de pessoas fumar dentro. Preciso de grana pra comprar umas guitarras.
Falou ao grupo.
- Já deu tempo, moçada!
Um grupo de homens e mulheres saiu de dentro com garrafas de absinto e vodka.
O líder deles deu um tufo de dinheiro pra Jesus.
- Não te preocupa, Messiânico (Jesus não gostava desse apelido). Teu carro tá quase inteiro.
“Que não esteja pra você ver”, pensou Messiânico (que ele não nos leia, pois não gosta desse nome, diz que parece mecânico, profissão que ele detesta pois era a do seu pai, que espancava a sua mãe com uma chave de roda).
Jesus olhou, olhou. Tudo em ordem. Abriu o porta-luvas. Pegou uma carteira. De dentro, tirou uma fotinha e ia entregar pra Skilo, quando lembrou de lhe perguntar uma coisa.
- Há quanto tempo tu conhece Lilitéia?
- Dois anos, mais ou menos.
- Certo. Olha isso aí.
- Foto de homem, Rei? Que porra é essa? Por que que tu tem isso?
- Pra um dia acabar com sua alegria. E é hoje que eu acabo. Senta aqui.
Skilo sentou na poltrona do carro.
Jesus na lata lhe falou.
-Laertes até três anos atrás! Operou antes de tu conhecer como Lili.
Por que Jesus lhe contou? Se não soubesse disso, ia. Mas agora que sabia, fodeu. Todos os colegas iam ficar de gozação ainda por cima.
Voltam pro Forgeron. Skilo nota quem não era especial antes dos fatos recentes: Estela. O amor irradia de seus olhos pelas coxas altaneiras dela. Que cintura! Que rebolado! Eu quero morrer aqui!
Quero fazer um samba em sua homenagem!
Skilo arranja um pandeiro e extrai dele o cuspe de Deus, entre os dois bares. E a noite samba como nunca sambou.


sábado, 16 de agosto de 2014

A PARTIR DE KIOKO

Ele encontrara em Kioko a mulher ideal.
Uma beleza inigualável.
Um cheiro arrebatador.
Gostava imenso de alisar os cabelos castanhos dela.
E de beliscá-la. Ela não reclamava.
Quando a conheceu, emparedou sua esposa.
Mas, passado um tempo, conhecera outras tão belas quanto Kioko.
Foi quando povoou sua casa de bonecas infláveis.
A cada semana, levava uma delas para um motel.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

LIBERTAÇÃO

Fizera trinta anos num domingo do mês de agosto de 2012.
Foi quando começara a quebrar as paredes, depois de achar um mapa entre as lembranças de sua mãe, com instruções para um feitiço que lhe traria a libertação pelas mãos de uma mulher....parece que alguma coisa zona. Uma coisona?
Da primeira parede quebrada, saíra Zumbizza, desgrenhada, cadavérica, mas viva.
Acorrentou-a à primeira cadeira das oito que circulavam um pentagrama mau riscado.
Da segunda parede saíra Penélope, fêmea de um pônei, com as costelas à mostra e um monte de atrativos em suas feridas expostas para as moscas domésticas, que logo lhe atacaram. Amarrara-a numa das cadeiras.
Da terceira, saíra Caridibes, uma mulher gigante da tribo dos Pelópidas de uma das civilizações andinas.
Da quarta, Girafalísia, uma mulher de pescoço comprido, este cheio de argolas coloridas. Quase uma girafa.
Da quinta parede, Fantalides, uma fêmea de ectoplasma. Como ela ficara ali? Mistérios dos feitiços de sua mãe, bruxa original da Tasmânia.
Da sexta,  Afromérida, uma Vênus-de-Milo, originária de Milo.
Da sétima, Rubicídia, uma mulher barbada, de um circo do século XIX.
Da oitava......uma mulher com uma faca, que, no mesmo instante em que ele libertou-a da parede, acertou-lhe o peito, ágil e fortemente....uma mulher.....Amazona.

FUGA DE AMOR

Estava ali à mesa há mais de meia hora. Comia bastante. E com as mãos.
Pensando na floresta. Na floresta de onde o tiraram. E de vez em quando naquela cadela Doberman, a Charlene. Que beleza! As outras vinte cadelas não lhe superavam a formosura! Que olhar! Uma judiação ela no meio de toda aquela feiura. 
As cadelas cuidavam com eficiência de todo o quintal. O quintal parecia uma chácara. Tão grande que ninguém chegava até o fim do quintal por ser muito desolado e cheio de perigos equivalentes ao daquela ilha abandonada daquele filme...como é mesmo o nome?
Ele vivia com o corpo arqueado sempre, como que desacostumado a cadeiras e mesas. O que era a verdade.
Deram-lhe uma cama quentinha, com lençol limpo e coberta grossa. O frio estava dominando aquela região nos últimos anos.
Vestiram-lhe como a um milionário. Levaram-no às associações de amigos endinheirados. Apresentaram-no ao "high-society".
Noivaram-no, casaram-no, deram-lhe uma mansão no Jardim Selene.
Não conseguiram tirar dele o andar como o de um símio.
Os dias sucediam monótonos depois dos primeiros tempos de adaptação.
Foi num dia dos namorados que não aguentou. Sumiu. Procuraram-no em todo canto. Deduziram que voltara para a selva.
Um dia, alguém quis explorar os fundos do quintal na esperança de encontrá-lo e....não, ele não estava lá....
No outro dia, um outro fulano quis se distrair contando o número das cadelas e....Charlene não estava lá.
Mas quem uniu um fato ao outro?

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

FUROR MATERNO

O incêndio fora dominado. Mas antes lambera uns mil barracos.
Jovina teve de se esconder com quatro filhos na geladeira.
Ouvia as vozes, pedia socorro, mas ninguém acorria.
Passaram-se dias, meses, anos, e nada.
Seus filhos congelaram como picolés. Sentia-os vivos, porém.
Só ela não congelara. Por qual mistério isso não lhe ocorria?
Seus cabelos iam ficando cada vez mais brancos e longos.
O interior da geladeira se enchia dos fios de seus cabelos.
Quando abriram a geladeira, sem querer, no museu inaugurado naquele primeiro ano do século 32, seus filhos caíram e se quebraram, pois ainda eram puro gelo.
Foi neste momento que seus fios de cabelo tomaram todo o museu, cada fio se enrolando no pescoço de cada visitante, após o que, foram abraçando as colunas do prédio, colocando, em minutos, todo a instituição abaixo.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

DE LUZ A TREVAS

Havia tanta luz dentro dele.
Nascera com tanta luz. Envolvera de luz a todos do hospital.
É que começara amando. E assim continuara.
Ao conhecer Jurema, incandesceu seu interior. Na cidade, não havia necessidade de outra luz.
Porém, quando da primeira frustração amorosa, a luz em si foi dominada pelas trevas.
Naquela parte da cidade onde morava, agora, era impossível qualquer iluminação.
Todos torciam pra que ele arranjasse um novo amor.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

JORDÃO, O CABEÇA

Jordão estava ali há horas.
Não sabia o tempo exato.
Olhava Max, o gato, a farejar o fundo do fogão.
Um rato se escondia na orelha esquerda, estremecendo a haste dos óculos.
Seus olhos, de tanto olhar à volta, pareciam os olhos de um lagarto.
Há três meses, alguém chegara. Seus sapatos-plataforma eram inconfundíveis.
Ela olhou bem dentro de seus olhos.
Sua mulher.
Foi para o canto oposto da cozinha. Ele não vira nada. De súbito, uma nuvem sobre sua visão.
Mas ouvia. Sua mulher, Dara, arrastava outro corpo. Sentia os braços macios e quase frios da outra carne.
Parece que Dara fazia questão de juntar seu corpo ao da amante, por sinal, a irmã dela.
Por que ele não morria logo?
Porque já estava morto?
E aquele fedor pestilencial? Até quando teria de suportar?
Nesses três meses, estava sendo retalhado pouco a pouco.
Cada dia, um membro seu era cortado. Pra quê?
Por que sua mente não apagara? Por que esta dor eterna?
A mente dela teria sobrevivido?
Só sua cabeça e a da amante no centro da cozinha, agora.
Quem mandou escolherem uma casa tão isolada?



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

CABELOS, CABELEIRA, CABELUDA

Júlio chegara aos cinquenta anos. Barba e bigode sempre aparados. Corpo todo cabeludo. Seu apelido era Tony Ramos, em alusão ao ator famoso da Globo. Sempre solteiro e nunca só, embora solitário. 
As mulheres que arranjava era pra contrato temporário. Trabalhara mais de trinta como funcionário da empresa fornecedora de energia elétrica.
Pensara em se aposentar e curtir a vida. Ainda tinha presença, fartos cabelos, físico aperfeiçoado por anos de musculação. 
Para um velho, estava razoavelmente posto. Não tinha problemas de saúde. Era comunicativo. Esperava viver ainda uns quarenta anos. Um otimista.
Ocorre que no segundo dia de aposentadoria, quando acordou e olhou ao espelho viu uma grande cabeça de ovo no lugar da sua. Seus cabelos deram no pé, assim como suas sobrancelhas.
Como ficara assim? Correu à cama e viu um monte de cabelos puxando uma soneca.
Como resolver essa situação? Resolveu consultar a sua tia Gertrudes, que tinha fama de bruxa, conhecedora de ervas e feitiços ancestrais. Lembrou que ela tinha cabelos que chegavam até seus calcanhares. Achava seus cabelos tão fedidos que nunca conseguira manter uma palestra longa com a mesma.
Sua tia, quando ele chegara, acabara de falecer, enforcada nos próprios cabelos.
Ele pensou em pegar os cabelos dela, na verdade. Planejara a morte da tia com um bandido, dono de um inferninho. Mas algo saíra do controle. Não conseguiu ficar a sós com a tia falecida.
Só se quando ela fosse engavetada, ele a desengavetasse. Mas daria muito trabalho.
Da casa da tia foi para um bar beber. Ali encontrou o Gervásio, dono de um lava-rápido e de um inferninho.
Falou do seu problema com uma tal cara de dó que ao Gervásio só restou gargalhar.
Gervásio teve uma idéia. Sem planejar muito, pediu uma bebida pro barman e colocou nela, cinderelamente, um pozinho de derrubar elefante. Após, deu pro Júlio que, sequioso, bebeu de um gole só. 
Segundos depois, já estava no chão.
Quando acordou, no sofá de Gervásio, que morava nos fundos do bar, tinha ao seu lado a tia Gertrudes careca e os cabelos dela colados com cola poderosa na cabeça dele.
O fedor da tia empesteava todo o quarto. Júlio quase não conseguia respirar. Fazia uma força tremenda. Gervásio não estava por perto pra lhe explicar direito aquela situação.
Até que a mão direita de Dona Gertrudes ganhou vida e caiu sobre sua boca e nariz. Com a outra mão, puxava-lhe o cabelo que ia descolando com couro cabeludo e tudo.
Quando Gervásio chegou viu que o cabelo que tinha tirado de Dona Gertrudes voltara pra ela.
Nem quis dar tratos à bola para imaginar o que acontecera. Chamou o coveiro para tirar os dois corpos dali e foi tomar uma.

COMBUSTÃO

Os olhos de Bela brilhavam tanto, mas tanto, que ninguém se aproximava muito quando ela tirava as lentes protetoras.
Todos à sua volta acabam se queimando num momento ou outro. Não fosse ela muito linda, mas, muito, muito mesmo, não ousariam seus amigos e pretendentes se arriscar.
Nascera com esse problema. Seus olhos tinham uma incandescência além do normal.
A primeira que se queimara fora sua mãe. Logo que Bela nascera, o útero de sua mãe pegou fogo.
Mas somente o útero. Quanto a seu pai, quando a teve ao colo pela primeira vez, quase ficou cego, não fosse seu bebê - vulcão dormir de súbito.
Como era um cientista, tratou de dar tratos à mente e, em uma semana, criou um par de lentes especial que facilitaria a socialização de sua filha.
Até que conhecera o Elias. O Elias tinha um carro que parecia uma carruagem de fogo. Por aí, pelo carro, começou o amor de Bela, apesar de terem-na criado para ser desinteressada.
Depois do carro, seu amor passou para Elias, bom caráter, bom filho, boa conta bancária.
Um dia, em que tirara, casualmente, as lentes, Elias chegou de surpresa e não foi atingido pela luz de seus olhos.
Ela achou estranho. E desde esse dia, quando estava com ele, não punha as lentes.
No último domingo, Elias combinou um almoço com Bela. Seria no terraço de um famoso restaurante. Elias reservara só para os dois.
Ela chegou primeiro. Sentou-se, olhou o relógio e foi ao banheiro retirar as lentes.
Quando voltou pra mesa, lá estava Elias. Foi quando ela estava a pouca distância que notou. Ele usava lentes azuis e estava retirando-as e colocando-as num lenço de papel na mesa.
De repente, ele olhou pra ela. Entrou em combustão.


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

HAMSTERZINHA

Ele queria dar um presente. Um hamster.
Só que não tinha gaiola.
Lembrou-se da amiga Suzana. Ela possuía uma. Na verdade era a décima que ela comprara.

Ela tentou lhe alertar:
"Dez hamsters meus morreram, cada qual de forma estranha.
Um morrera falando uma língua morta.
Outro morrera falando uma língua viva.
O terceiro, elaborando equações quânticas, conseguiu abrir uma porta dimensional e se transportou a um outro lado, antes de morrer.
O quarto, colocado na gaiola com o quinto, uma fêmea, descobriu-se que era um vampiro, da linhagem do primeiro hamster vampiro da Valáquia. Transformou a fêmea em sua escrava sexual. Povoou a gaiola de filhotes. Tive de colocar a todos num forno.
O sexto, uma fêmea, colocada na gaiola com outra fêmea, o sétimo hamster, começou a fazer apologias ao hamster-lesbianismo. Como sou hamster-lesbófobo, escrevi um artigo descendo a lenha neste tipo de relação. O que me rendeu um processo das duas femeazinhas. Tive de contratar um assassino de ratazanas, pois não encontrei um de hamsters. Sou neo-nazista, mas, só em relação a roedores e seus familiares.
O oitavo era um acrobata chorão. Morreu escorregando nas próprias lágrimas.
O nono morreu de peido. Foi inchando, inchando, inchando, e, feito Dona Redonda, estourou, empesteando com o cheiro toda a casa. Tive de me ausentar uns meses.
O décimo, terrorista, fugiu com minha gata. De vez em quando, vejo os dois juntos no telhado. Pra mim são uns ingratos. É como se tivessem morrido."

Ele desistiu da gaiola, mas.....quando ele foi pra casa, após tomar banho, vestir o roupão, abrir a porta do quarto, acender a luz, quem ele viu? Suzana, que, de dentro de uma gaiola de boate, em sedução, lhe falou:
- O que você quer fazer com sua hamsterzinha?
Refletiu que tinha de tomar menos ácido e tomar cuidado com os ratos de viatura.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

AMOR DE ESPUMA

Gostava de manipular espumas e com elas fazer bonecos imitando a forma de seres humanos.
Seus seres de espuma eram tão perfeitos que pareciam andróides.
No começo, fazia pequenos animais. Em seus animais de espuma, já se percebia a genialidade de suas mãos.
Teve a idéia de tirar fotos com seu celular. Essas fotos divulgou-as por via das redes sociais da internet.
Em pouco tempo, cresceram as encomendas. De tal modo, que outra pessoa em seu lugar contrataria umas dez pessoas para ajudar.
Porém, ele não quis. Teve de se desdobrar para atender as encomendas. Mas, passando a dormir pouco, tomando bastante remédio e café, foi se adaptando às demandas.
Começou a aumentar o tamanho de seus bonecos, chegando então às formas humanas.
Iniciou fazendo réplicas de seus vizinhos. Eram de tal modo perfeitas que quando os mesmos entravam em sua sala, tinham a estranha sensação de estarem vendo irmãos gêmeos. Como ele fazia isso com espuma? Só ele sabia o mistério.
Quando Maria se aproximou dele, ficou entusiasmada com sua habilidade.
Maria começou a visitá-lo todos os dias.
Depois, passou a querer acompanhá-lo todas as horas, todos os minutos.
Ele, o artesão, compreendeu o profundo desejo dela e atendeu-o.
Como ela adorava Rolling Stones, com sua carne misturada à uma resina termofixa, chamada melamina, usada para espumas específicas, e a outros elementos derivados de embriões animais, fez o boneco do Mick Jagger.
Um crítico de arte conhecido chamou o boneco Mick de "a melhor obra artística do século!".
Um fã-clube da banda marcou uma visita para o próximo mês.

ESPERANÇA DA PELE

Havia aquelas árvores centenárias.
Elas rodeavam a garagem.
Ele pensava: "dá pra ensaiar várias peças aqui".
Um colégio abandonado atrás da casa abrigava fantasmas que deixaram faz muito de responder à chamada.
O seu tio treinava artes marciais na área de serviço.
Os móveis eram raros.
Jovens colegiais de raro em raro passavam pela estrada de terra frente á casa.
Queimavam-se de cigarros estranhos.
As árvores centenárias brilhavam de óleos primitivos.
Ele foi ao pátio do colégio abandonado.
Olhou o silêncio, tocou no vazio, sentindo o seu coração ausente.
O coração ficara na outra casa que não era como esta, de madeira, cortiço de cupins.
Agora, reparava nos matos que cresciam onde havia batidas cordiais.
Seus pelos estavam caindo, mas a pele tinha esperança.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

ENQUADRADO

Mudara para aquela casa contra vontade.
Ele era alérgico àquela velharia.
Os cômodos da casa reforçavam-lhe a claustrofobia.
Contratara um arquiteto, que tentou de tudo, mas, as mudanças que implementara não conseguira diminuir o ar de terror daquele casarão.
As paredes eram muito sólidas. Toda pancada que se lhe dava não provocava um arranhão sequer.
Até um dia que....
Bem, havia um quadro que, de certo modo, era imexível como as paredes. Um quadro da renascença, que retratava mulheres nuas num grande tonel de uvas.
Como ia dizendo: até um dia que....
No quadro, a cada dia em que ele olhava, os rostos das mulheres como que lhe clamavam...
Até um dia que...um braço, da mulher que estava ao centro da obra, saltou daquele mundo bidimensional.
Ele se assustou. Quis fugir. Mas uma força estranha o aproximava mais e mais do quadro.
Num certo momento, quando seu celular apitou meia-noite, sua mão foi puxada pela mulher ao centro do quadro.
O que aconteceu depois desse momento?
Fiquei no quadro, sob o poder de orgasmos constantes.

SURPRESA DERRADEIRA

Esperava ansiosamente a visita dos amigos.
Amigos que considerava mais até que a própria família.
A solidão ali era avassaladora, nuvens escuras nos cantos, corujas estranhas a passarem de aventais brancos.
Tanajuras passavam sempre no seu leito para auscultar-lhe a vida.
Mas a vida não era nada em comparação com a intensidade de alma que sentia em seus amigos.
Soubera que estavam chegando.
Por que não o visitaram antes quando havia ânimo maior em suas células?
A irmã passava óleo em suas pernas que secavam.
Deixavam suas pernas como pernas de perôbo, como diziam na sua Alagoas.
Quando se internara da outra vez, observara no estacionamento do hospital carros funerários com o símbolo da Suástica.
Foi daquela vez que ficara com raiva de sua prima Silmara. Pegou ela e o médico cirurgião a foderem no leito que pertencera a seu Joaquim, que morrera de câncer logo após essa transa. Terá sido uma coincidência?
E os seus amigos que não chegavam?
Estava sentindo seus órgãos a falirem.
Pelo jeito, teria de morrer sem ter falado com eles.
Sua alma estava com pressa de deixar o corpo que enfeiava e secava.
Mas chegando do outro lado, no país da Morte, quem ele encontrou?
- Nós chegamos e ficamos esperando você.
- O que aconteceu com vocês?
- Houve um acidente fatal. Um irresponsável bateu de frente com nosso carro.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

ASPECTO

Mal acordava, ia pro computador.
Ouvia músicas, compartilhava doideiras, curtia caduquices, entrava em campanhas a favor da humanidade, clamava contra os extirpadores de clítoris ou clitóris, contra os que enterravam mulheres, contra os que maltratavam animais, contra os que eram contra o vereador Gereboão, contra os que odiavam café, os que odiavam limonada, os que gostavam de comerciais antigos, os que eram contra a guerra de papel na escola da esquina, aquela que recebeu o nome em homenagem àquela atriz da antiga novela das oito, bem antiga mesmo.
Dera um jeito de comprar um penico e adaptar à cadeira. Fizera um buraco no meio da cadeira.
Substituíra seu alimento sólido por pílulas de polivitamínicos.
Adaptara seus olhos à tela do computador. Não dormia. Enchia-se de pílulas de cafeína.
Sua aparência, nesses vinte anos de voracidade diante do PC mudara de aspecto aos poucos.
Hoje, não identificamos muito bem quem é ele e quem é a máquina. E nem se ele é um aspecto de nós.