sexta-feira, 17 de outubro de 2014

FANTASVIRTUS



    Quando surgira naquele PC, não se sabe. Dizem que um programador esperto a criou para devorar vírus e afins.
    Com o tempo ela foi criando vida própria. Conseguia até sair da tela e aparecer por minutos no mundo real.
    Ela era uma fantasma bug/uesa, pixel/enta, típica entidade de PC com placa-mãe viciada, que não tinha medo dessa instabilidade, mas não sabia porque. Como adquirira esse bug, só ela sabia. Em que berço nascera? Só ela não sabia. Como e onde? Não sabia nem do programador. Do qual falavam muito. Achava que essa lenda era uma mentira para pacificar o povo da área de trabalho. Não tivera vida anterior? Em verdade, se sentia como uma entidade superior ao começo das coisas.
    Fora criada com um ícone infantil ao colo. Dizem que o programador quis somente brincar. E colocou essa criança como marca aleatória. Uma criança com rosto de granada.
    Ficara estremecida desde que aquele exorcista visitara o computador e benzera as memórias, atendendo aos vivos que o compraram. Vivos no sentido de espertos. Queriam revender pelo triplo do que valia, após o benzimento.
    Um motivo pra que ela os matasse. Como os mataria? Sairia da tela, hipnotizaria os mesmos e devoraria suas almas virulentas. O fato é que não conseguiu. Se apaixonou pelo mais moço. Quando apareceu fora do PC, não se assustaram. Resolveu hipnotizá-los e convenceu-os a saírem daquela casa e não voltarem mais. Ou seja, ao mais moço pediu que viesse de vez em quando.
    Pelo menos a casa ganhara mais momentos de silêncio. Procurou mostrar que era piedosa registrando a inevitabilidade de seu ato numa pasta chamada diário, no cantinho esquerdo da área de trabalho. Mas não cai nessa. Eu hein. Sou mouse das antigas.
    Um castigo : sua imagem apagava agora de dois em dois minutos. Teria de conviver com isso.
    O seu inferno se tornou maior também pelo surgimento de vírus traquinas, que chiavam continuamente, escondidos no sistema. Ah, sim. O moço morrera, debaixo de pilhas de placas-mãe num armazém de restos de computadores. Em lembrança dele, de tempos em tempos, ela transformava-se num descanso de tela, gerando explosões de fogos de artifício em todos os cantos.
    O que não tem remédio....BIIIIIIIIIIPPPPPPPP !!!! Esses traquinas também me irritam. Ainda bem que sou sem fio.

FLUTUANTE


...Quando quebrei o espelho, libertei as mil imagens.
Mas tive de rapidamente assimilá-las. 
Entendeu a razão de meus mil quilos?....
- Viu, seo Delega, o Cacaso falou-me assim objetivamente do teto, onde parara feito uma bexiga de aniversário, e queria que eu o rasgasse. Ele sabia da minha útil motosserra a gasolina 40 cc sabre de 16 polegadas.
Risquei longitudinalmente seu ventre com cocô de cachorro, do meu cachorro, o Pincel, pois, era somente o que estava à mão.
Antes de fazer o corte, pensei na fragilidade do Cacaso na minha mão, vieram-me à mente as fofocas que Cacaso fazia a respeito de todo mundo. Ele já me prejudicara bastante. Creio que havia uma semente invejosa no seu ser. Uma semente gigante.
Era uma maneira dele conseguir o amor de determinadas pessoas só para si. Fofocava mas era por amor. Isso. A consciência falava-me deste modo, mas, não inteiramente convencida. Sentia ela morder os dentes. E consciência trincando os dentes na cabeça dá uma dor.
Então, seu delega eu fiz o que tinha de ser feito. Não usei a motosserra. Apenas empurrei-o pela janela e ele, gritando, foi flutuando em direção à São Pedro.




NÃO DEU TEMPO


Cheguei em casa depois do trabalho.
Tranquei e abri.
E areei bem o fundo espelhado da panela.
Aquela que fora presenteada por uma ex....ou atual?
Estava desanimado mas...de uma hora pra outra passou.
Esqueci-me que trancara a casa e abrira o gás.
Tarde pra voltar atrás. Eu queria uma pizza. Não deu tempo.
Zás.

A VINGANÇA DA BARULHENTA


Foi nesta casa mesmo. Ela era um espírito barulhento por demais. Me aconselharam que fosse até ela.
Achei-a. Quando lhe pedi silêncio, ela me puxou para baixo da casa, onde morrera há cerca de vinte anos, na época em que meu avô abusara de sua virgindade e a matara. 
Então, me tornou um fantasma da mesma categoria que a dela. Já buscava quem a substituísse ali.
Me esperava? Não sei. Hoje, ela pode curtir mais a morte, sem estar ligada a uma casa só. Eu faço o que ela fazia. Ligado eternamente a estas salas, até encontrar alg.....Mas meus barulhos são hipercriativos, inimagináveis. Quer ouvir? Quer morar aqui?

SARDINHA

Sempre gostei de sardinha no espeto. Meu pai me amarrou. Meu tio me queimou.
O queimadinho que me toma o corpo da cabeça aos pés tem o mesmo cheiro. 
Grito bastante. Sempre tive um certo talento pra cantora lírica. Soprano.
Agora saquei porque estocaram gasolina no porão. 
Por acidente, eles também estão queimando.
Minha mãe nunca gostou que eu brincasse com fogo. Minha avó não deve ter falado isso pra eles. É fogo, né?

MÃOS FERIDAS



Levantou da cama, no mesmo horário de todos os dias. Tropeçou.
Não percebeu as duas mãos em que pisara. 
Mãos sangrando, que antes pertenceram à Sua. 
Quem a substituiria no recolher e limpeza das caveiras amontoadas perto do poço? 
Arranjaria um à-toa. Ao final, o tiraria da vida, pisaria em suas mãos e recomeçaria.
Porém, teria de se levantar. Estava difícil.
Alguém esmagava seus dedos das mãos com botinas de sola de ferro.

BICHO-PAPÃO


Debaixo da cama, todos os bichos-papão se acumulavam. 
Nenhum deles teve jamais coragem de sair de sob o leito e enfrentar a luz.
Afrodite fingia ter medo para que eles gozassem de uma elevada auto-estima.
Mas era só ela se postar diante dos olhos de algum, querendo bater um papo, o cujo gritava e se afundava mais ainda no escuro.
Teve uma ideia: se comunicaria através de cubos de letras.
Espalhou-os pelo quarto e esperou. Teve de fingir um grito de medo para que a primeira mão se atrevesse.
E como tremia essa mão. Nunca vira bicho-papão tão medroso.
Só o que queria era conversar. Talvez até passear. Fazer um piquenique. Ir à praia. 

FINADOS


Ela foi enterrada num dia de finados.
Na véspera, eu já a esperava no mausoléu, deitado num caixão arranhado por minhas unhas, por causa de eu ter sido enterrado vivo.

ESTOCADA


A primeira estocada eu ouvi.
A segunda ouvi e vi, pois, me atingiu de frente, apagando minha alma para sempre.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Miolos



Aproximou-se dos miolos, deixados a um canto. Pegou-os e levou-os à cozinha.

Aprendeu a gostar de miolos com sua mãe. Ela os fazia maravilhosamente.

As cervejas estavam estupidamente geladas. Quando os miolos ficaram no ponto, pô-los num prato, colocou farofa em cima e comeu-os babosamente com goles de cerveja.

Enquanto fazia isso, passava na memória aquele dia, na quinta série do Fundamental, em que dezoito moleques lhe afundaram no vaso sanitário, impiedosamente.

"Saí, desatinado,
Vieram pessoas
E me botaram 
Na merda.
Vieram pessoas,
Levei porrada,
Caí na merda,
Mas estou vivo".

Delas os primeiros miolos que comera.

domingo, 14 de setembro de 2014

A FOME E A IRA DAS VINTE E UMA


Estela acordara naquela cidade sem saber como fora parar lá.
Só lembrava de estar num ônibus que se dirigia à cidade de Registro, estado de São Paulo.
E de repente acordou ali. No leito de um quarto decorado à moda clássica romana. Uma cama de casal muito bem arrumada e cheirosa.
"Dormiu bem?"
A voz veio de um homem velho, vestido com um roupão de seda. Seu nome era Antonin, filho de francês com brasileira.
"Onde estou?"
"Na minha residência. Você precisava de um lugar para dormir. E eu disse que poderia ficar aqui."
"Não me lembro de nada disso"
"É verdade. Você deve ter bebido muito."
Ela se levantou, meio cambaleante. Foi até a janela de vidro.
Uma névoa muito densa iniciava seu domínio, mas ela enxergou alguma coisa.
O que viu deixou-a tão perplexa quanto ela ter surgido ali, sem lembrança do que a levara até aquele lugar.
"O que são aqueles?"
" Tá falando dos mausoléus?"
" É. Você mandou construí-los?"
" Sim, pra cada uma das minhas falecidas mulheres construí um."
" Você teve tantas mulheres assim?"
" Vinte e uma para ser exato."
" E todas morreram?"
" Infelizmente."
" Que Deus dê paz para elas e as liberte!"
Quando Estela expressou este desejo, uma força imperceptível começou a alterar o ambiente. Quem tivesse ouvidos apurados diria que alguma coisa estalou além, nos mausoléus.
" Estou um pouco tonta.."
" Durma então. Depois nos falamos."
Ele notou que logo ela estaria totalmente à sua mercê. Era só preparar o ambiente para a inoculação mortal.
Ajustava para ela o vigésimo segundo mausoléu. Gostava de possuir mulheres mortas. Mas antes armava, para cada uma delas, um casamento fictício, para o qual contratava sempre atores amadores, aos quais dava um fim posteriormente. 
E fazia questão que todas as meninas tivessem treze anos, fossem loiras, tivessem um metro e sessenta e cinco, e pesassem quarenta e oito quilos.
Antes da aplicação da injeção em Estela, resolveu tomar um banho. Terminado o banho, estava tão mole, tão fatigado, que resolveu tirar um cochilo, antes de fazer o que planejou. Olhou pro lado e gostou do que viu. Deitaria ao lado dela por alguns minutos, os últimos da vida da menina.
Para ele, foi uma noite incomum. Cheia de pesadelos. Sombras voejavam por sobre o quarto, asas estalavam na escuridão, fantasmas davam asas à liberdade da madrugada, antes que o galo cantasse.
Quando Antonin acordou, de súbito, devido ao estrondo das aves das sombras, olhou com extremo susto à sua volta.
Estavam ali os fantasmas de suas vinte e uma esposas, que, sem perda de tempo, avançaram sobre a jugular de Antonin e sugaram todo o seu sangue, após o que, incontinenti, o arrastaram para invisível abismo, ele aos gritos que ninguém no mundo dos vivos ouvia....nem dos mortos tampouco.
De manhãzinha, Estela despertou. A seu lado, Antonin, de olhos esbugalhados e corpo encaveirado, tornara-se um defunto, ou melhor, uma múmia, parecendo estar morto há séculos sem conta.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

CORPOS DE VELHINHAS




Aqueles corpos de duas lésbicas velhinhas sempre boiavam em qualquer asfalto aonde decidisse deslizar seu carro. A lembrá-lo. A lembrá-lo. A lembrá-lo. Mas ele não as jogou na avenida. 
No entanto, elas faziam questão de acusarem-no, aparecendo nuas, com veias azuis à mostra. 
Desde o seu arrependimento, tal acontecia; começaram a explicitar a sua nudez, fantasmas exibicionistas. E jurava, ele não curtia mais LSD, cocaína, revistas eróticas, nem velhinhas como as....que o criaram.
Na sua aldeia, era o único menino que tinha mães lésbicas.
No começo, tinha até orgulho.
Um orgulho que lhe surgiu junto ao ódio que sentia de todos os outros que lhe zombavam.
Uma dificuldade foi começar a namorar.
Tinha bloqueios na fala. Era chegar perto das meninas e o pau da barraca subir. Bloqueando o verbo naturalmente.
Quando passou a faturar algum, começou a pagar meninas para que lhe permitissem acariciá-las. Gostava de alisá-las. Chamava-as, ora de Lili, ora de Mimi. O nome de suas progenitoras.
Depois de um tempo, começou a contratar para que pudesse esbofeteá-las. Chamava-as, ora de Mimi, ora de....isso: Lili.
Foi assim, graduando, graduando, até que chegou a contratar velhinhas parecidas com suas mães, para masturbá-lo. Chamava-as......isso mesmo.
Duas dessa velhinhas não desgrudaram mais. Sempre prontas ao prazer.
Chegaram quase a concorrer com suas mães. Foi quando decidiu assassiná-las. Não as contratadas. Mas sim as mães Mimi e Lili.
Preferiu ficar com as outras, mais úteis, segundo pensava.
Mas não matou suas progenitoras no asfalto. Lembrava perfeitamente. Esperou que ficassem nuas, no rala e rola.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

NO MUNDO DOS MORTOS



Chegou de noitinha à entrada daquela cidade, enormemente cansado.
Encostou-se em uma árvore centenária, a quinze metros do rio. Pôs a mala velha de lado e fechou os olhos.
Um rugido. Abre os olhos, assustado. À sua frente : um circo, montado a uns vinte metros de si, no sentido da cidade. Uma movimentação inusitada o rodeava.
Feras circulavam sem peias. Mansas, porém grandes e peludas. Um leão, um tigre, um elefante que parecia um mamute, um avestruz (que não era exatamente uma fera para os outros, mas pra ele....).
Um palhaço se aproximou:
- Tá precisando de um lugar pra dormir?
- Ah, sim. Obrigado. Eu preciso pelo menos de uma noite para prosseguir.
- Sem problemas. Moro só naquele trailer desde que minha amada foi assassinada por um maníaco. Mas é bastante aconchegante. Tudo bem?
- Já dormi em lugares piores.
- Certo. Meu nome é José. O seu...
- Epaminondas. Pode me chamar de Nondinho. Meus amigos me chamam assim.
- Tá bom, Nondinho. - Estendeu-lhe a mão.
Chegando ao trailer, Nondinho (fiquemos íntimos logo dele) arrumou sua mala num cantinho. Conferiu suas roupas, pegou um sabonete, já no fim, sua calça jeans de todas as horas, uma camisa lisa vermelha, e decidiu tomar um banho no rio antes de dormir.
Quando estava nadando, estranhou uma movimentação no fundo. Puxou ar e mergulhou. O que viu não permitiu racionalização. Uma moça estava amarrada a uma pedra e se debatia. Num instante, ele, que já fora bom em quase todos os esportes, possuidor de algumas medalhas e jornais que o louvavam, livrou a moça, levando-a à superfície. Fez respiração boca a boca, como convinha e a moça deu um suspiro profundo, revivendo.
Olhou à volta e notou que o circo havia desaparecido. Não entendeu o que acontecia. Levantou-se, esfregou os olhos e, por um momento, pareceu-lhe ver uma das feras, e o trailer. Mas foi só por um momento.
Ouviu um barulho e olhou na direção do mesmo. Para sua surpresa, o palhaço que o hospedara se aproximava, tirando um espelhinho de um saquinho na cintura.
- Nondinho, você hoje me fez feliz.
- O que você quer...
- Quero dizer que você finalmente nos libertou.
- Como assi....
- Tenho o prazer de lhe apresentar minha amada Lídia, reanimada por você.
Quando ele olhou pra ela, um esqueleto de pé com um vestido antigo lhe sorria.
Quando Nondinho voltou o olhar para José, este era agora um esqueleto, que estendia-lhe um espelhinho.
Nondinho pegou o espelho rapidamente pra ver se....não, ele não era um esqueleto, mas, sim, ele estava sangrando. Na certa, ferira-se no rio. Pensou no vampiro brasileiro de Chico Anísio.
José pegou nas mãos ossudas de Lídia, olhou-a e se dirigiu a Nondinho.
- Quer saber por que está sangrando?
- Por quê?
- Porque está morrendo. No mundo dos mortos desta região, todos sabem das crianças e moças que você violou e matou. Minha Lídia foi a primeira.
Do rio, vinham vozes: "você nos matou bem longe de mamãe, você nos matou bem longe de papai".
Nondinho olhou e viu dezenas de crianças boiando no rio. De súbito, uma grande quantidade de lama se eleva do rio e o cobre, qual um tsunami negro e fétido. Um redemoinho se forma e o traga para o abismo infernal.
Enquanto somem no ar, ficam José e Lídia a dançarem inaudível canção, cantada pelas corredeiras do rio, orquestrada por grilos e insetos e estranhos pássaros pretos.

sábado, 6 de setembro de 2014

SOMBRAS SOBRE ALMAS



Antonio estava ali há muito tempo. Não incomodava ninguém. Viveu naquela chácara luxuosa desde o nascimento, há vinte e cinco anos.
Até que....se apaixonou perdidamente por Arlete, a filha mais nova da costureira, a única daquelas bandas nesta profissão, conhecida como Dona Suzana, que falava mal, pois possuía a língua cortada. O avô de Antonio a conhecera em outros tempos.
Arlete era tarada, ou seja, gostava demais de seu bichinho de estimação, o Tyrone. Trazia-o sempre bem protegido. 
Quando não dava pra ela ficar perto de seu animalzinho, deixava-o trancado no quarto.
Um dia, Antonio necessitou que Dona Suzana costurasse uma de suas calças. Foi até lá. Quem o recebeu foi Arlete.
Serviu-lhe um cafezinho com bolachas. Bolachas das baratas, sem qualidade e sabor. Mas isso pouco importava. Ficara encantado com a beleza da filha da costureira. E a menina também sentiu uma atração por ele. 
Começou a visitar todos os dias a costureira, fazendo encomendas necessárias e desnecessárias, com olhos na filha, naturalmente.
Os fatos foram assumindo cada vez mais sua inevitabilidade. 
Com o tempo, noivou, casou, mudou-se com a mulher para uma casa em Paranapiacaba. 
Ela, claro, pediu pra levar seu bichinho. Antonio não se opôs, apesar de uma certa antipatia gratuita. Foi tolerando o que ele chamava de "hamster", embora o animal só fosse parecido com um. Arlete lhe colocou num canto da cozinha e foi deixando. 
O tempo foi transcorrendo. A rotina foi tomando assento. Até que...a mãe.....
Bem, fazendo um flashback: o avô de Antonio, Dr. Leônidas, foi até o pai de Suzana, quando esta tinha nove anos, e trocou-a por um cavalo manco. Levou-a pra uma casa pros lados de Santo André, e fez de tudo um pouco com ela. 
Contavam que tivera uma família para os lados de Cubatão. Mas dela só restava um filho, criado pela avó.
Nas relações sexuais com a menina, tinha uma tara estranha: gostava de enfiar na mesma objetos estranhos, geralmente legumes, que ele cozinhava depois e comia com grande apetite.
Tal qual a filha, a mãe também gostava de bichinhos de estimação. Só que de bichos mais perigosos. Geralmente, bichos que estavam morrendo. Ela ia até eles e os melhorava com a imposição das mãos, dom inexplicável que se manifestara desde a mais tenra idade. 
A partir das curas, ganhou um respeito inusitado da Mãe Natureza.
Quando completou doze anos, Dr. Leônidas pegou-a e levou-a para o fundo de uma mata próxima, onde havia uma cachoeira.
O que ele pensava fazer com ela? Matá-la? Teria encontrado uma menina mais nova que ela pra fazer outro escambo? Por que ele levou o machado?
Na verdade, todas essas suspeitas estavam certas.
Ele esperou que desse meia-noite. Amarrou  Suzana forte numa árvore e, abrindo a boca da menina à força, cortou parte de sua língua com uma faca amolada. Ela gritou, mas ele não parou, a não ser quando ela teve um desmaio. Foi quando o Dr. começou a afiar o machado.
Sentado numa pedra, não viu, não notou sombras de árvores se aproximando e o cobrindo. E, à medida que era envolvido, coisas estranhas iam acontecendo: foi ficando cada vez mais jovem, até que virou um bebê. Então ocorreu curiosa transformação: mudou de sexo. Ficou uma linda menina de cabelos ruivos como os da futura mãe adotiva. Sim, Suzana adotou a criança e deu-lhe o nome de Arlete.
Suzana ficara livre das cordas como por encanto. Porém, como seu coração não era totalmente puro, as sombras não devolveram-lhe parte da língua. 
Suzana tornou a menina praticamente uma escrava. Surrava-a constantemente. Chegou uma vez a amarrá-la numa árvore, porém não teve coragem de matá-la.
Quando converteu-se ao Racionalismo da Cruz, tratou de ocultar sua má inclinação. Tornou-se meiga e generosa. Começou a tratar Arlete com todos os desvelos. 
Viveu feliz com a filha, até que, quando já estava morando com ela e o genro, morreu, sendo, em suas últimas horas, envolvida por estranhas sombras, que avançaram por todas as janelas, portas, e brechas. Ampararam Suzana como anjos de algum paraíso abandonado, que as recebeu com um sorriso beatífico em seu rosto.
Foi quando Arlete e Antonio completaram um ano de casados. Ou mais ou menos isso.
Arlete ficou estranha. Lembrou-se que sua mãe dissera que fora o avô do marido quem cortou parte de sua língua. Sua mãe contou-lhe quando Antonio levou as alianças de noivado. Ele providenciou para que velório e enterro saíssem a contento, de modo que sua amada não se estressasse desnecessariamente.
O dia do enterro foi um dia cansativo. Sua esposa tivera um ligeiro problema de pressão baixa e fora levada pra casa pela prima, que aliás era enfermeira. 
Arlete, recuperada instantaneamente, foi à cozinha e alimentou Tyrone. O relógio mostrava que era meia-noite em ponto o momento em que a boquinha do bicho devorou o queijo que ela dera.
Antonio não teve remédio a não ser ficar no cemitério até que o enterro se desse. Após o enterro,  despediu-se de todos e voltou pra casa.
Chegou em casa, e não sentiu o cheiro de carne morta, nem o cheiro de sangue humano. Foi à cozinha, pegou uma chaleira das antigas e encheu-a de água. Enquanto fazia isso, deu uma olhada com insano ódio para o animalzinho de Arlete. Ele estava ligeiramente maior, fora da gaiola, e dormindo. No entanto, o ódio súbito que lhe viera do bicho enevoou-lhe o juízo, impossibilitando a Antonio equilibrada avaliação de diferenças. 
Desejou esmagá-lo. Lançou mão da chaleira, antes de ferver, e deu um banho em Tyrone. Então, estranhamente, iniciou na pele do "serzinho" uma espécie de fervura de água fria. Tyrone não acordou, mas começaram a brotar bolas de pelo em suas costas. E cada uma delas dava origem a um "hamster" travesso. Os animaizinhos se libertaram da gaiola facilmente e começaram a montar em tudo que era móvel da casa. Começaram a quebrar coisas, a derramar líquidos, enfim, a fazer tudo que dizem que um saci e uma criança travessa faz.
Antonio sentiu uma dor no coração e caiu. Arlete, toda melada de sangue, apareceu.
Chegou perto de sua orelha direita, deu um grito tão lancinante que parecia saído de um filme de terror do Zé do Caixão. Depois lhe disse, sadicamente:
- Teu avô cortou a língua de minha mãe!
Porém, Arlete não notou o hálito de Tyrone, que não resistiu ao aroma da carne da "sua dona", ao contrário do protagonista de Crepúsculo. O bichinho tratou logo de comer os dois.
Como forma de acabar com o mal que ali se instalara, as sombras, após o fato trágico ocorrido,  surgiram e, de forma rápida, cobriram todo o vale, fazendo com que só a natureza ficasse, sobranceira, sobre tudo, varrendo todo o traço de humanidade e do mal que esta atraía.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

TERROR DE MÚSICA


De onde estava vindo aquela música?

Saiu de casa para olhar e viu a música avançar na sua direção juntamente com uma sombra.

Avançava tão lentamente. E ele estava tão bêbado.

A música ia matando pelo caminho, isso ele percebeu. Todos iam morrendo em êxtase. Viu seu cachorro ser tragado. O filho. A filha. A mulher. A mãe. O pai.

Nas ele não queria morrer. Mesmo em êxtase. Mesmo bêbado.

Foi até seu carro. Pegou um atalho para a estrada marginal que o levaria pra bem longe daquela cidade.

Num cruzamento de rodovias, percebeu que não tinha gasolina suficiente para ir muito longe.

Sorte que sabia onde tinha um posto perto dali.

Apalpou o bolso com medo de não estar com o cartão de crédito.

Não estava no bolso da camisa. Verificou o bolso direito da calça. Estava lá. Ufa.

Pediu pra encherem o tanque. Queria avisar sobre a música que chegava. Mas tinha medo que um pânico eventual paralisasse o trânsito.

Ele, que antes adorava música, deixava nascer em si uma fobia instantânea quanto a sons. Arrancou o aparelho de som do carro com toda a fúria. Ninguém no posto entendeu.

E estava tão bêbado. Será que a música o pegaria antes de rolar em um barranco?

Outras músicas se faziam ouvir adiante. Como distinguir a música à frente da música mortal atrás de si?

UM ERRO EXPLOSIVO


Eles achavam que estavam fazendo justiça. Trazia ele na mão direita uma sacola.
Quando a primeira linchadora disse "é o assassino", todos iam acreditando.
Dois pularam sobre ele, pegaram seus braços e arrancaram.
Outros arrancaram todos os seus cabelos, após estupro coletivo.
Os que chegaram um pouco mais atrasados arrancaram-lhe as pernas.
Depois foram se juntando mais pessoas.
Quando por fim a vítima estava desconstruída em sua dignidade e corpo e talvez alma, pararam para observar.
Aquela pessoa não era ele. Nem sequer se parecia com ele.
Começaram a colar os membros de novo no tronco.
A cabeça haviam jogado nas margens do rio. Sorte que ainda estava lá. Encaixaram a cabeça. Limparam bem o corpo. Só não tinham certeza quanto à alma.
Quando ele levantou, pegou na sacola um pacote e um controle.
Sorriu, como para uma fotografia. Apertou uma tecla pequena e explodiu tudo num raio de quatro quilômetros.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

DESENHOS MORTAIS



Chegaram no dia anterior ao dia dos mortos. Já era a décima terceira casa para a qual aquela família, de treze pessoas, se transferia. 
A família era composta por um casal, Suetônio e Jacira, e por suas 13 filhas, que completaram no dia em que chegaram à nova residência a idade de 13 anos. 
Suetônio era um monstro. Mas ninguém desconfiava do que fazia com as filhas, toda noite. A mãe, Jacira, só pensava em se matar. Mas esse era o limiar de sua manifestação sobre o malfadado ato. Não fazia mais nada. Não agia, só pensava.
Antes de mudar, o casal estudava os terrenos para saber se haviam sido no passado cemitérios indígenas. E então se mudavam.
O fato insólito que ocorria era que nos pisos das casas que alugavam, desde o primeiro dia de mudança, começavam a aparecer retratos das pessoas cujos ossos estavam sob a casa.
Tudo começou quando as filhas completaram dez anos de idade.
Cientistas e outros especialistas e místicos tentaram esclarecer a questão. Por que só nas casas em que aquela família se instalava tal fenômeno acontecia? Tentaram ver se aquelas pinturas podiam ser produzidas por alguém da família. Constataram que não. E o mistério continuou.
A casa passava a funcionar como uma atração turística, vivendo a família do valor que cada visitante pagava, correspondente a uma entrada de cinema. 
Interessante é que toda a família se mobilizava nos cômodos, fiscalizando e guiando.
Isaura, a filha mais esperta, teve uma idéia genial. Como era hábil desenhista, decidiu que iria passar todas as figuras dos pisos dos cômodos para telas a óleo. Comprou telas e tintas e colocou mãos à obra.
Amália, a irmã menos esperta, queria ajudar, mas Isaura achava ela frágil demais, apesar dela possuir um talento que superava o da irmã até, para o desenho de rostos.
Quando Isaura desenhou a última figura, era noite e estava tão cansada que dormiu no canto daquele cômodo ao fim do casarão.
Dormiu o sono dos justos e injustos durante três dias. No momento em que acordou, numa madrugada qualquer, enxergou no piso do cômodo toda a sua família desenhada.
Correu toda a casa e não achou ninguém. Ficou desesperada. No intuito de resolver o enigma, começou a pintar telas, retratando cada membro da família. Pensou que assim poderia lhes ressuscitar, tirá-los daquela espécie de morte. Esperou dias e dias, fechou a casa às visitas, ficou sem tomar banho, e nada sucedeu. Até que teve uma idéia: desenhar a si mesma também numa tela. De repente, a família toda nas telas era a chave.
Depois de duas horas, completou o trabalho. Fatigada,  dormiu na frente da tela que pintara.
Quando acordou, viu o milagre acontecer. Todos reviveram de novo...menos seu pai, que continuou a ser uma vívida pintura a óleo, ladeado de duas figuras estranhas. Os que miravam-lhe a tela tinham a impressão de vê-lo movimentando o nariz para espantar intrometida mosca ou eventual coceira.
Isaura e Amália, vez em quando, retocavam-lhe a pintura, e passaram a entortar-lhe o rosto sadicamente, principalmente depois que notaram pelos seus olhos pintados a intensa dor que sentia. Jacira sorria beatificamente.

Bosch  -  Cristo Carregando a Cruz

terça-feira, 2 de setembro de 2014

AMOR MORTAL MORTE IMORTAL



Maria estava tonta. O que acontecera? O que teria bebido, comido? Resolveu pensar em outra coisa, talvez mais importante. Precisava ver como ele estava. 
Ontem, ela fora muito má com ele. Pegou um táxi e foi até o apartamento dele, no centro de Cubatão.
Quando estava saindo do táxi, uma bicicleta esbarrou nela e atravessou seu braço.
- Seu fdp! Olha pra onde tá indo, viado!
Ela se recompôs. Passou a mão no joelho e conferiu se era ali mesmo onde devia ter descido. Seguiu até o apartamento de Márcio, no primeiro andar.
Ela chegou e foi entrando. Estranhou. A porta estava encostada. Ele foi se levantando detrás do sofá.
- Você está bem? - ela pergunta.
- Acho que...sim, tou...E então? Gostou dos bombons?
- Gostei.
- Caseiros. Fiz especialmente pra você.
- Não sabia que você era prendado assim?
- Estou começando um curso de cozinha aí.
- Parabéns!
- Quer um vinho?
- Aceito. É de marca, né?
- Não, é de garrafão. Claro que é de marca.
Traz uma taça e serve o vinho a ela.
- Essa bebida é divina.
- Divinamente dionisíaca.
- Ela não existe de verdade. Criei por força mental. Olha.
A taça de vinho se transformou numa flor.
- Você tá em algum curso de magia também.
- Aumentou a força do meu pensamento, como em Ghost.
Dá pra transformar em vinho de novo?
- Dá, mas não vou fazer.
- Você não quer é ser desmascarado.
- Adivinhou.
- Tá chato por quê?
- Você sabe.
- Tou pensando muito em você. Como que cê vai ficar sem mim.
- Tá preocupada comigo. Que legal.
- Não brinca.  Você sempre foi a parte mais dependente desta relação.
- Quer dizer que só eu levei a sério, né?
- Como eu te falei ontem. Aconteceu. Conheci outra pessoa.
- Sei.
- Desde que te contei ontem, me sinto mal. Não quero te perder, apesar de.....
- Amar a outro.
- Estou a ponto de desabar. Eu não entendo por que não deu certo. Só sei que perdi...o sentimento....a gente foi seguindo e...
- E você encontrou esse cara. Ou essa cara.
- É homem. Nunca fui chegada a sapata.
- Mas e se acontecesse?
- Nunca.
- Você não tá notando nada?
- Não.
- Deixa eu te explicar. Quando te dei os bombons, você guardou-os na bolsa e depois me falou que...tudo aquilo...fiquei arrasado e corri até o rio....Na verdade, te acompanho desde ontem.
- Me seguindo? Isso é doentio. Acho que não posso nem ser sua amiga. Tudo tá muito recente. Deixa eu ir embora...
Ele se coloca na frente dela.
- Calma. Preciso terminar. Hoje eu vi tudo que você fez desde que acordou...
- Como, se eu não notei nada....
- Agora, eu sou um espírito. Quando corri até o rio e me atirei, o desenlace entre a alma e o corpo foi mais rápido que eu pensei. Aí foi que eu pensei nos bombons que eu te dei. Me arrependi, mas era tarde. 
- Como?
- Quando você me confessou ontem, eu já sabia. Ele, o seu novo amor, veio me falar um dia antes de você me confessar. 
- O que tem os bombons?
- Depois que ele se foi, já tinha feito um plano. Saí para comprar uns bombons e fui até um xamã que conheço em busca de um veneno, que ele já tinha me mostrado, bastante usado por sua tribo. Eu só tinha em mente morrer junto com você. Comeríamos os bombons e...
- Espera, não pode ser. 
- Pode sim. Você, quando você pegou o táxi e se sentou, tirou dois bombons da bolsa e praticamente os engoliu, tamanha a sua fome. Para entrar em convulsão e morrer, foi quase que imediato. Um veneno muito poderoso, desconhecido dos toxicólogos. 
- Por isso que a...bicicleta atravessou...
- Seu braço. 
- Você me matou! Você chama isso de amor?
- É. Quer dizer: foi. O que me chateia é que ainda não encontraram meu corpo no rio...Mas é uma questão de tempo. Deve estar bastante verde e inchado, não acha?

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

PERDIÇÃO DE AMOR


Josildo era um homem que sofria constantes gozações.
No serviço. Na escola. No caminho da escola até sua casa. Enfim, em quase todo luga onde aparecia.
Ele não tinha paz. Também quem mandou? Colocara em sua cabeça aos trinta anos que as melhores mulheres eram as de alma calada. Foi quando resolveu comprar sete delas. As bonecas infláveis passaram a ser, na sua concepção, o modelo do sexo feminino. Não ficavam chatas na pré-menstruação. Respeitavam seu desejo de silêncio. Não tinha que disputar com elas o controle da TV, entre outras vantagens.
Porém, os vizinhos não deixavam-no em paz. Escreviam coisas horríveis em sua porta. Era só ouvirem seus uivos na hora do amor com as caladas que começavam a gargalhar do absurdo da situação.
Resolvera mudar-se. Pegou suas sete bonecas, algumas roupas, os poucos móveis e se mandou para um lugar bem isolado.
Esperou dois dias depois da mudança e solicitou sua aposentadoria.
Foi quando viveu os momentos mais felizes com suas mulheres.
Mas como toda relação onde há mais fala sexual que de almas, um dia ele resolveu romper as amarras e pedir divórcio, ou seja, impor.
O que lhe ajudou a reforçar tal atitude foi o sentimento de amor que começou a nutrir por Matilde, que era tetraplégica.
Mudou de idéia quanto à mulher ideal. Agora, sim, encontrara a mulher perfeita.
Quando foi pegar as sete bonecas, elas tinham sumido. Deduziu que alguém as tinha roubado.
Chamou Matilde para morar com ele. Ela aceitou. Cuidava dela com extremo carinho. Ela nunca recebera tanto amor. Mesmo de seus pais que eram excessivos em seus cuidados.
Porém, numa noite de grande geada, em que no mundo sombrio se costumava comemorar a noite de Despina, deusa das sombras, algo estranho aconteceu. Acordou de súbito, mas só suas retinas brilhavam. Os olhos não mexiam. Sua pele....emborrachada. E Matilde? Continuou de carne e osso, mas teve de presenciar tudo. Lia-se em seus olhos extremo pavor. 
Então, apareceram uma a uma as mulheres desprezadas de Josildo. No entanto, eram agora de carne e osso. Teriam agora uma nova vida. Um presente de Despina, que também foi rejeitada, quando sua mãe Deméter só pensava em achar Perséfone, que fora raptada por Hades. Se Despina não fosse adotada pelo titã Anitos, morreria no abandono.
Uma das ex-infláveis, calmamente, foi até o fogão e abriu o gás. Outra tampou todas frestas, fechou portas e janelas.
Após olharem-no uma última vez, saíram, mas antes cada uma delas deu um beijo nele por gratidão a todo o tempo em que lhes dedicou amor sincero.
Um pouco antes da casa ser inteiramente consumida, só brilhava, rodeado de sombras, no meio do que antes foi a sala, o crânio de Matilda, como uma abóbora americana de dia das bruxas.

domingo, 31 de agosto de 2014

DEIXA UM BRAÇO PRA MIM, BEBÊ


Daniela nascera naquela casa rústica, ao centro daquele sítio abandonado, localizado nos Areais. O local era despido de quaisquer condições de higiene e humanidade.
Havia uma quantidade imensa de mato, árvores, sombras, grutas, insetos e bichos desconhecidos. Para o homem - caos desnaturado, para a natureza - ordem natural.
Seus pais escolheram aquele local por ser bem distante da cidade.
Parece que o pai tivera um problema com a lei. Diziam uns que matara uma família inteira em nome da honra...Que honra justificaria isso? Outros que a esposa era enfermeira ilegal, procurada pela polícia, e tinha em seu currículo abortos sem conta. Quem sabe, as duas versões eram verdadeiras. Pois ela tinha o hábito esquisito de só andar com trajes de enfermeira, onde quer que estivesse, em casa, na rua, em festas, na cama, na vida real, na vida dos sonhos, pesadelos, etc. etc. 
Antes de ir para o sítio, descobrira que era portadora de uma doença que lhe dava pouco tempo de vida. Andava, a poder de muletas e se cansava muito fácil. Os médicos tinham dito que duraria um ano, se tanto. Logo que engravidasse, ficaria mais débil e mais perto do fim.
Quando Daniela nasceu, os pais se espantaram com a forma de seus braços e de suas pernas. Chegaram à conclusão que estavam recebendo um castigo divino. O pai resolveu pagar a sua parte do castigo. Voltou à cidade e se entregou às autoridades.
Irresponsavelmente, porém o pai resolveu deixar a criança ali com a mãe, que, na sua maneira de pensar, era a culpada da filha ter nascido um monstro, estava amaldiçoada. Iria arranjar outra mulher que tivesse mais saúde. E certamente teria filhos mais saudáveis. Contava que mãe e filha morressem e, assim, sumisse o vestígio de sua culpa.
Mas na cadeia teve problemas de consciência e findou que tornou-se evangélico. Uma liderança pastoral entre os internos. Quando cumpriu a pena, se arrependeu enormemente dos atos do passado. Pensava muito em sua filhinha. Mais até do que na mãe dela. O abandono não foi coisa de espírito ajuizado. Foi mesmo uma coisa desumana.
Pegou sua segunda esposa e voltou àquele sítio abandonado. Se viva, sua filhinha teria uns quinze anos de idade. Sua primeira esposa, pela doença que tinha, devia ter morrido.
Sua segunda esposa achava que a filha também estava morta, no entanto, o esposo tinha esperança de que ela estava viva.
Quando chegaram ao sítio, ele notou uma mudança fenomenal: árvores cercavam a casa, como formando um muro de proteção. A casa estava jeitosa, com suas trepadeiras e flores. Havia até mesmo um jardim com as flores mais inusitadas, até carnívoras.
Mal ultrapassaram os limites do quintal, o solo deu um leve tremor, sorrateiramente, as árvores agarraram os pés do casal com seus galhos longos e raízes emaranhadas. Então, começaram a arrancar seus membros, troncos e cabeças, colocando as partes num canto protegido de sol e chuva.
Daniela, sentindo o cheiro, saiu da casa e foi se aproximando das carnes em retalho. Suas patas de javali eram fortes e rápidos. Seu rosto porém tinha uma delicadeza ímpar, uma meiguice angelical.
Quando abriu a boca, a comer os pedaços humanos, nunca imaginaria que certos pedaços pertenciam a seu pai, senão...talvez até não engolisse assim tão deseducadamente, ou.....talvez nem fizesse diferença.
Um berro feminino do interior da casa:
- Dani, deixa um braço pra mim, bebê! Cê sabe que eu só como isso, não gosto de perna nem de cabeça!

sábado, 30 de agosto de 2014

O CORPO DA BANHEIRA


Aquele corpo sempre aparecia naquela banheira.
Bastava ele enchê-la.
Desde que se mudara, acontecia aquele fenômeno.
Ele, de início, tivera medo.
Pensara estar vendo coisas.
Deixou o LSD, a cocaína, a maconha, o absinto, o cigarro e abandonara até o hábito de beber perfumes da mãe.
Mas o corpo continuou a aparecer, a cada vez que ele se preparava pra tomar banho. Também! Continuava com o maldito hábito de riscar as unhas na banheira.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

CHOPIN NO NECROTÉRIO


Quando tomou os comprimidos, não imaginou que acordaria daquele modo e naquele lugar.
Estava deitada no necrotério, silente, numa mesa fria.
Não conseguia mexer senão os olhos. 
Notou que estava nua pois tinham colocado um travesseiro alto sob sua cabeça.
Ele veio também nu em sua direção.
Seu membro viril pequeno e erguido.
Armado de paixão.
Nesse momento, desejou ser um esqueleto de dedos ossudos em riste para uma vingança.
Tocava num celular próximo o Noturno de Chopin - Op. 9 nº 2.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

VIAGEM ENCANTADA



Ela estava ali, naquele lugar, sozinha, sorrindo, uma bela moça com um vestido simples, as coxas à mostra, cabelos pretos, olhos grandes, seios médios, colar de contas coloridas, brincos de estrela, um cheiro de....um cheiro de...Por que a única expressão que lhe ocorria era....um cheiro de....morte?
A idade dela lembrou a Armindo Poento a que tinha Ju, sua mais adorada, quando morreu....Júlia, aquela com a qual se juntara de corpo e alma....um pouco menos de alma e....o fato é que ele terminara com ela, indo direto ao assunto, empurrando-a num poço abandonado, que acabou sendo soterrado, para sua sorte, numa enchente inesperada.
Aconteceu naquela cidadezinha do Sul, cujo nome é tão sumidinho que a gente acaba esquecendo. 
Ninguém esclareceu o desaparecimento da moça.
Ele fora, depois disso, para o Centro-Oeste. Depois, para o Sudeste. Passado um tempo, recomeçou a beber. E quando bebia era muito agressivo...mas só com os mais fracos que ele. Gostava mesmo era de maltratar as mulheres que namorava. 
Passado algum tempo, ingressou numa Igreja, mais com o intuito de impressionar a filha do pastor Ubiratã do que de abraçar uma fé sincera. Até conseguiu acalmar seus nervos, mas não obteve a prenda perseguida. Um primo dela, o Agenor, foi mais rápido.
Começou então, por inveja, e por maldade, a tramar a morte do tal primo. Nessa ocasião, começou a cheirar mais. A cheirar e a se encher de maconha. De uma maneira descontrolada. 
O interessante é que achavam que quando seus olhos estavam vermelhos e ele tinha aquela larica era o sinal de que o Espírito Santo estava dentro de si.
O primo da moça tinha uma fraqueza no passado. Quando Armindo descobriu, tratou de procurar um botãozinho que a reativasse.
Numa festa da igreja, em que comemoravam o primeiro ano de fundação da mesma, Armindo se aproximou pela primeira vez do outro. Ocorreu que em três anos já estavam carne e unha. Melhores amigos.
E foi justamente com três anos dessa amizade que Agenor....morreu. Fora atravessar a rua e um caminhão - "push" - atropelou-o. Foi por acaso, fugindo ao planejamento do "amigo".
Mas....Ju, por puro desgosto, também terminou morrendo e Armindo, coitado, ficou na mão.
Ele gozava de uma consideração muito grande na comunidade. Era um excelente profissional das artes gráficas e cenográficas. Tinha até um enorme ateliê no centro. 
Aos poucos, fora se afastando da igreja e deixando de lado seu comportamento sádico. A desculpa que dava para o auto-isolamento era sua entrega à profissão. E realmente se enfiou no trabalho. Cinco anos e pouco sem tirar férias.
Resolveu então, certo dia de natal, tirar um final de semana para viajar até Aquele Lugar. Aquele Lugar havia sido uma Sociedade Alternativa nos anos sessenta. Armindo pegou um ônibus e foi. Demorou umas seis horas a viagem. Quando divisou uma placa onde estava escrito "Aquele Lugar a 200 metros", ficou aliviado.
Todos falavam desse tal lugar onde os carros subiam sozinhos as ladeiras, sem precisar de ligar o motor; comentavam das casas em que se ouviam alienígenas fumando baseado, viam-se discos voadores do tamanho de moscas, enxergavam-se centauros viciados em LSD, e hidras sem-vergonhas que riam sem parar dos anjos-palhaços.
E o mais fabuloso mistério estava naquela caverna, na entrada da cidade.
No dia do show do Grande Cantor, que começaria logo mais, nada lhe era mais importante do que aquela moça, que sorria sem parar, tão linda, tão linda, tão....Quando olhou-a, uma paixão tão ardente lhe pegou que tomou uma decisão: não voltaria mais pra sua cidade. Ali seria o seu paraíso de amor.
Quando chegara n'Aquele Lugar, tentou tirar proveito de tudo, principalmente, gostava de observar as pessoas dos bares e inferninhos, mas sempre calado, pois tinha dificuldade de comunicação com as pessoas.
Foi àquela caverna impulsionado por curiosidade. Diziam que ali muita gente morreu de combustão espontânea. Essa história lhe atraiu. E....na entrada da caverna, encontrara aquela moça. Como ela dava risada. Sem parar. Era muito estranho. Devia estar cheia de erva. Mas não devia ser maconha. Os efeitos ridentes eram quase sobre-humanos.
Ele perguntou-lhe: - Você vive aqui? Ou tá de visita como eu?
Ela: - Não, eu morri há seis meses isolada nessa caverna. 
- Mo...morreu?
- Sim. Mo...morri. E desde que morri, gosto de presenciar acidentes. Fiz questão de estar presente no seu acidente de ônibus. Lembra? Você morreu nele.
Ele gaguejou: - Ju...Ju...Júlia?
- Que Júlia o quê? Sou apenas uma morta que gosta de ver os corpos morrendo e as almas desprendendo. Um pequeno vício, sabe. Dá mais barato que maconha. Você devia experimentar.
Bem, o fato é quase ele morreu uma segunda vez. Foi assim mesmo. Foi. De outra forma não. Tenho boa memória. Claro.

domingo, 24 de agosto de 2014

DISTORÇÕES NO ESPELHO-COVA


O coveiro, conhecido pelo apelido de Banguela, acordava geralmente bem tarde para que durante a madrugada tivesse bastante energia para seu trabalho secreto.
À uma e pouco, ia do Cemitério da Vila Elizabeth até aquela chácara abandonada, que ficava bem longe do mesmo, onde havia uma grande piscina.
A velha Juciléia lhe pagava por cada viagem que ele fazia.
Um dia, em seu terceiro transporte, quase fora descoberto. 
O cachorro do Zebedeu tinha se soltado e danou a seguí-lo, latindo bem alto. Sorte que o Zumbi, assim chamavam o filho da velha, se livrou dele. Claro que perdeu duas orelhas e um pedaço do braço nessa empreitada.
Banguela não, Estevão é o meu nome, costumava responder aos que insistiam em gritar bem alto seu apelido.
Ele marcava, não esquecia o rosto dos que lhe zombavam. Porque sempre que lhe chamavam pelo apelido, lhe chasqueavam. Costumava, em vingança, mexer nos túmulos dos parentes dos zombeteiros e tirar pedaços de orelha, nariz, mamilos, ou outras coisas quase impublicáveis. Todas essas partes ele colocava em envelopes para enviar um dia ao endereço dos e das idiotas.
Em determinada madrugada, em que umas dezenas de pessoas ainda estavam nas ruas, após louvarem Iemanjá, o Fuinha Preguiça, filho da Dona Engrácia dos Salgados, o seguiu. Empurrando um carrinho de mão com algum objeto enrolado, Estevão Banguela seguia, respirando com dificuldade, parando vez em quando, para limpar o suor da testa ou tirar a água dos joelhos.
Fuinha não sentia no físico as torturas da distância, era um touro de saúde, forte, rápido, um verdadeiro atleta, jogava futebol no time da cidade, participava das maratonas anuais, tinha uma resistência inigualável.
Depois de umas três horas, Banguela chegou à chácara, que ficava do outro lado da cidade. Na entrada da chácara, havia uma piscina, na beira da qual o coveiro parou. Quando apoiou o carrinho, o objeto enrolado caiu e Fuinha viu, estarrecido, o que estava escondido. Ficou de cabelos em pé. Ou de pé nos cabelos.
Era a cabeça de Dona Jurema que ele viu. Ela morrera há uns três dias, por motivos ignorados. Ultimamente, na cidade estava havendo muita morte inexplicável.
Banguela desembrulhou o corpo da mulher um pouco mais e no centro da piscina fez-se um rodamoinho como na história de Ulisses, o grego esperto, do qual nenhum dos dois ouvira falar.
Jurema foi sugada até o centro da piscina como a gente suga o que restou num copo de suco, geralmente com grande intensidade de sucção.
Mal Fuinha se virou, uma pancada atingiu-lhe o quengo, vinda de uma mulher com asas na boca. Quando acordou do desmaio, estava na beira da piscina, transformado num porco. Ao seu lado, Zumbi salivava, pois, adorava carne de suíno.
A piscina ficou cada vez mais vermelha do sangue das inúmeras vítimas trazidas e um grande espelho veio à superfície. Nele viam-se imagens distorcidas pela água e pelo sangue.
Apareceram então, disfarçados com capuzes, surgidos do entorno, vários políticos e endinheirados da região.
A velha Juciléia, que estava com uma asa de frango na boca, cuspiu-a no jardim próximo e começou a, com base nas figuras que surdiam no espelho, desfiar suas previsões, que poderiam ou não favorecer o caminho dos que estavam ali presentes.....menos do porco.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

EVERESSING DE KRISTO



Everissing sempre subia naquele prédio abandonado, cantava e se equilibrava, ao sabor dos ventos, no parapeito da sacada do seu 13º andar, em todo 13 de agosto. Já há cinco anos fazia isto. Como ele conseguia usar o elevador de serviço, se.....?
Não tinha os dois braços, nem as duas pernas. Não fosse Kristo, seu cãozinho verde....não se sabe o que seria dele na maior parte das atividades diuturnas.
Todos se perguntavam, quando o viam a colear por entre os espaços:
"Como se aliviava do ataque dos cocôs? Como tirava a água do joelho? Como fumava sem mãos, já que sempre estava com um cigarro ou guimba à boca? Como fazia amor ou, aqui entre nós, como fodia? Fodia gostoso? Rolava no corpo da amada como um pneu até atingir a fenda perseguida com o fuso pleno de veias? Era dotado, e, deitando, como puxava a coberta doada por aquela senhora doida de caridade e libido?".
D'xa pra lá. Voltando ao assunto, pra criar coragem, quando subia ao prédio, levava sempre seu cachorrinho.
Fora, mesmo com sua deficiência, um carpinteiro qualificado, pastor e professor de Física na juventude.
Dominava o Inglês, o Francês, escrevia e cantava como ninguém, pintava, fazia a barba, como aquele Príncipe Randian....tem um filme no youtube, de nome "Freaks", da década de 30, em que se pode vê-lo. Era filho de escravos britânicos esse príncipe, e era casado com Sarah, sua eterna princesa.
Hoje, vive a andar pelas ruas.......como anda? Ele é bastante eficiente em se deslocar, movendo quadris e ombros, como um réptil recém-nascido.
Quando começou a viver por entre as nuvens de pó das ruas, passou a beber de tudo, até água de poça de chuva, se misturada a algum tipo de álcool, mesmo que fosse de álcool desinfetante.
O que o levou a trocar de vida? Ninguém sabe...ou melhor, talvez Kristo Rex saiba. O cachorrinho está com ele desde seus primeiros avanços nos becos pestilentos.
Diziam que aquela data, 13 de agosto, devia ter alguma coisa a ver com a mudança de vida.
Será que uma esposa, um filho seu, uma mãe, um pai, ou até mesmo ele, se atirara do 13º andar de algum edifício ou daquele prédio abandonado?
Comentam que ele era casado com Zulmira, filha de pastor no bairro da Vila Nova. Teve com ela 10 filhos....mas essa não morreu, está vivinha da silva, casada com Setembrino, um fedido e obeso branco de más ações que trabalha no porto de Santos.
Kristo sempre estava a postos para o que pedisse seu dono. Às vezes, Everissing subia naquela estátua do Largo do Sapo e pregava aos invisíveis e visíveis. Gostava também de ler os Salmos aos transeuntes, principalmente o de número 22.
Um mendigo antigo nas ruas, o Conrado, diz que Zulmira não foi o amor da vida de Everissing e, sim, Carolina, filha de um padre viciado em revistinhas proibidas. Ela morrera naquele acidente feio no centro, quando caiu um helicóptero no meio de um prédio, no começo da avenida nove, justamente quando Carolina olhava a cidade com olhos fechados e os cotovelos postos no parapeito daquele prédio. Só um, que estava com ela, se salvou: ele.
Ele amava Zulmira e Carolina. E esta amava o Brancão, obeso e fedido, levantador de copo de chopp, mas amado como ninguém por Zulmira. Por ela, o estivador fora até capaz de emagrecer 200 gramas.
Kristo gostava de pegar bolinhas de papel que o dono jogava.

Quando Everissing chama seu cãozinho, todos olham, tal a potência do seu grito.
Kristo Rex só é bravo com quem procure humilhar seu dono, segundo este.
Uma vez mordera Preta, cadela invisível de Conrado, só por ela ter olhado rosnando para Everissing.
Sim, Kristo era um cachorro invisível, como as hordas de mendigos urbanos.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

ATUAÇÃO MORTAL

Quando mudaram para aquela casa, já sabiam. Teriam que conviver com um fantasma. O fantasma de Jussara, a florista.
Souberam do que lhe acontecera em detalhes.
Jussara, em seus últimos anos de vida, sofria de constantes depressões. Ela trabalhava no Hospital-Maternidade São Vicente como enfermeira, há vinte anos atrás. 
Não tinha muito caráter. Tinha prazer no sofrimento dos bebês e suas mães. No início, se divertia, embaralhando os recém-nascidos. Depois, costumava pegar alfinetes e enfiar os mesmos nos bracinhos das crianças.
Um dia, fora encontrada morta, com um bracinho de bebê a lhe apertar a garganta, naquela casa que eles, os Mendes, alugaram. 
Jussara lhes aparecia desde manhã. Ora estava no sofá olhando revistas antigas. Ora estava na cozinha mexendo nas panelas, tentando roubar cozidos e frituras.
Os Mendes fizeram consultas a todo o tipo de metapsíquicos, médiuns, físicos quânticos, psiquiatras, astrônomos, ginecologistas, padeiros, carpinteiros, pedreiros, etc. etc. etc. Mas....inútil todo tipo de esforço que tentavam.
Decidiram então, matar Jussara....Mas.....só fantasmas matam fantasmas, dizia a tia Sirleide. Os Mendes então resolveram se matar uns aos outros.
Esperaram ser promovidos ao grau de Fantasma Júnior. Destarte, foram atrás de Jussara.
Acontece que....Jussara....não estava morta e sim viva. Forjara a própria morte e fantasmagoria para se livrar de cobradores.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

MUITO AMADO

Em sua casa, reinava uma perfeita harmonia.
Era o único amante e o melhor amigo de sua mulher.
O melhor ponta-direita do time de veteranos do Clube da Igreja do Bom Sacrifício.
O melhor pai do mundo.
O mais premiado. Fora até xerife honorário.
O mais gentil.
O mais necessário.
O mais querido filho.
O mais querido irmão.
Por que então pregavam-no naquela cruz? Suas mãos e pés sangravam todo o sangue do mundo.
Debaixo de si, via seu filho mais velho abrir uma cova com todo o prazer do mundo. Assobiava uma canção antiga. Do filme Cabaré.
Sua mulher servia ao centurião um "Cabernet", vinho feito com uma casta de uvas chamada "cabernet sauvignon", da espécie "vitis vinifera", originária de "Bordeaux", sudoeste da França.
Toda a Igreja que ele ajudara a fundar estava presente.
Às duas horas da madrugada, tocaram os sinos.
Ele acordou por alguns segundos. Tudo fora um sonho. O coração doía, estava grande demais. Como os seus caninos.
Seu melhor amigo cravou-lhe a estaca, então.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

SKILO EXTRAINDO O CUSPE DE DEUS


Havia fregueses que chegavam às vinte horas no bar do Forgeron e três horas depois bandeavam pro bar do Wotan. E havia outros que faziam o inverso. Skilo não tinha regra. Um dia aportava num e, no outro, embicava no bar concorrente.
Skilo chegara no Wotan cabisbaixo. Quem notara primeiro a sua chegada foi o dono do bar que, naquela ocasião, estava demasiado atento a todo movimento. Skilo chegou e sentou junto à mesa do Cocada, outro que naquela noite estava pagando todas, pois, finalmente conquistara seu grande amor – Alexandra dos olhos de jabuticaba, a mulher de cinquenta mais linda daqueles arredores.
A razão de Wotan estar com atenção dobrada nas coisas era que, na noite anterior, surgiu no bar um grupo mal encarado que bebeu até as duas e não pagou. Claro que ele conseguiu a mobilização da polícia e recuperou metade do dinheiro devido, contudo, seguro morreu de velho e prometeu a si mesmo mais cuidado com seu negócio. Skilo era boa gente, segundo Wotan. Todavia, um cuidado extremo até com os amigos era bom de se ter de vez em quando. Porque os companheiros gostavam de abusar da generosidade de Skilo.
Skilo, como já disse há algum tempo, era um rapaz feliz, pelo menos por fora.  Sonhava ter cartazes com seu perfil nas paredes de dentro do bar do Wotan.  Umas fotos especiais, peito aberto e riso franco, mostrando todos os seus dentes, escovados com flúor todas as manhãs, tardes e noites. Ah, e um indefectível pandeiro nas mãos.
Queria ser como o pandeirista Tadeu Giovani, que faz fama desfilando em escolas de samba paulistanas, como a Vai-Vai, Gaviões, Pérola Negra, Águia de Ouro e outras. Seu desejo, em suma,  era superar Raul Seixas na preferência do dono. Adorava samba. E este ritmo era suficiente para lhe arrebatar todas as tristezas. Sim, ele tinha tristezas.Toda moça que ele amava, ou gostava de forró moderno ou de funk sem qualidade.  
Amar, para Skilo, era ter paixão com elo de eternidade. Amor não precisava de tempo. Amar é ao primeiro olhar. Dois dias bastavam para firmá-lo. Como amor de espírita, vindo de reinos de prata e reconhecidos em primeira energia, ponto. Detestava o termo sem elo que era o provisório se apaixonar. Ponto. Porém seu amor tinha uma gradação. Amava mais Lilitéia que as outras.
A falha de Lili era gostar de merda musical. Seria tão bom se as garotas que ele amava gostassem de músicas de qualidade. Até o rock ele toleraria.  Assim, tolerava o gosto de Jesus, o roqueiro. Não se declarava aos companheiros, mas apreciava rock do bom, com vocalista e instrumentistas de primeira. Gostava de olhar os bateristas. Aprendera a aplaudir a banda de trash metal de nome Slayers  por causa de um sobrinho, afilhado de Jesus. Se gostasse menos de samba e mais de rock, seria baterista qual um dos ex-bateristas da Slayers, o Dave Lombardo. Todavia, o pandeirista Tadeu era o seu ídolo máximo. A maneira com que ele dominava o instrumento era como ele amava Lili.
Gostava muito de samba e, particularmente, do de raiz. Mitificava Almir Guineto, Clara-Nunes-Guerreira-da-Utopia,  Jorge Aragão, Paulinho da Viola, Leci Brandão, Elizeth Cardoso, Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz,  etc. Dos novos, gostava de Fabiana Cozza, Mariana Aydar, Teresa Cristina, Lucinha Guerra e Roberta Sá,  e adorava Criolo, enfim,  o seduziam todos que reinam no Dourado Reino do Samba Que Deixa a Alma Bamba e Mulateada.
Skilo era tão sambista quanto Jesus era roqueiro. Se Jesus possuía todos os instrumentos de rock em todos os cômodos de sua casa, Skilo tinha os cartazes dos maiores sambistas, desde Ernesto dos Santos, o Donga, colados no lado de dentro de seu guarda-roupa e nas paredes internas seu barraco de um cômodo, incluindo o banheiro.
Cocada convidou Skilo para o bar do Forgeron, pois chegara no Wotan o ex – namorado de Alexandra dos olhos de jabuticaba, e ele não ia com a cara do sujeito. 
De súbito, Skilo confidenciou a Cocada, mal sentaram no  Forgeron, ou seja, no Fogueirão's Bar, como chamava o Haroldinho.
- Vou me cegar!
Alguém que ouvia gritou. Não sei se foi o Cabeludo ou o Ricardo.
- Olha o elo aí, gente! O elo do amor nos olhos eskilosos!
Jesus, o roqueiro, gritou:
- Nego, fala mais baixo, que senão tu me queima. Loucura aqui só a minha que é roqueira e dionisíaca!
- Eu tenho de me cegar! Só cego eu serei lúcido!
Skilo tentava explicar aos de ao redor seus porquês. Atualmente, amava três. Ano passado, amara cinco mulheres ao mesmo tempo. E estava cansado disso. Ontem, percebera a quantidade de energia que essa dispersão exigia.
- Mas decidi. Meu amor maior é por Lilitéia! Quero me cegar!
- Tu cheirou pó de aspirina? - indagou o Cabeludo.
- Não, quero cheirar só a Lili. Mas tou viciado nas outras. Entende?
Nisso, chega Estela, loira de cegar o Sol, e senta em seu colo. Skilo, enfastiado, leva ela pra um canto, conversa, com sua gesticulação exagerada, e ela se vai. Ela não chora, pois não era disso. No entanto, passa na sua frente várias vezes durante aquela noite, ladeada por diferentes machos.
Cocada sorri de modo discreto do desejo do outro.
- Cegar? Neguinho, tu está precisando é de uma surra. Passa lá em casa que lhe dou uma surra de baqueta de batera.
- Tu tá me tirando?
- Daqui há pouco, tou te tirando da mesa.
- Cocadinha, você conhece algum comprimido de glaucoma?
- Puta-que-o-pariu! Tu tá me enchendo com essa história!
Cocada se levanta, pega um cigarro e vai fumar lá fora. Skilo o segue.
- Escuta, escuta, deixa eu te explicar! É que, cego, posso amar Lili em toda sua essência. Só sentiria o seu cheiro. E meu amor seria só dela. Não notaria a beleza das outras. Sacou? Penso nela envelhecendo a meu lado e eu preso em suas malhas de ser. Amaria Lili em amor eterno.
Jesus, o roqueiro, se aproxima.
- Tá filósofo demais. Que droga tu usou?
- Tu sabe que só uso samba do bom assim como tu usa o rock.
- É, o rock que fumo é dos melhores!
- Assim como os sambas que eu cheiro!
- Essa sua história com a Lili. Vou ter que te contar...
- O quê?
- Não, vou ter que te mostrar! Mas vou ter que te cegar um pouco de tempo.
- Meu irmãozinho, isso é o que mais quero.
Jesus puxou um lenço do casaco e vendou os olhos do sambista.
Pediu o carro de Alex emprestado um tempinho. Todo mundo ali estranhou o fato dele meter o Skilo vendado dentro do automóvel.
Jesus levou o apaixonado duas ruas atrás daqueles bares. Foram na direção de um carro hermeticamente fechado. Tirou a venda dos olhos de Skilo.
- Seu carro aqui? Não tá muito distante?
- Eu aluguei pra um grupo de pessoas fumar dentro. Preciso de grana pra comprar umas guitarras.
Falou ao grupo.
- Já deu tempo, moçada!
Um grupo de homens e mulheres saiu de dentro com garrafas de absinto e vodka.
O líder deles deu um tufo de dinheiro pra Jesus.
- Não te preocupa, Messiânico (Jesus não gostava desse apelido). Teu carro tá quase inteiro.
“Que não esteja pra você ver”, pensou Messiânico (que ele não nos leia, pois não gosta desse nome, diz que parece mecânico, profissão que ele detesta pois era a do seu pai, que espancava a sua mãe com uma chave de roda).
Jesus olhou, olhou. Tudo em ordem. Abriu o porta-luvas. Pegou uma carteira. De dentro, tirou uma fotinha e ia entregar pra Skilo, quando lembrou de lhe perguntar uma coisa.
- Há quanto tempo tu conhece Lilitéia?
- Dois anos, mais ou menos.
- Certo. Olha isso aí.
- Foto de homem, Rei? Que porra é essa? Por que que tu tem isso?
- Pra um dia acabar com sua alegria. E é hoje que eu acabo. Senta aqui.
Skilo sentou na poltrona do carro.
Jesus na lata lhe falou.
-Laertes até três anos atrás! Operou antes de tu conhecer como Lili.
Por que Jesus lhe contou? Se não soubesse disso, ia. Mas agora que sabia, fodeu. Todos os colegas iam ficar de gozação ainda por cima.
Voltam pro Forgeron. Skilo nota quem não era especial antes dos fatos recentes: Estela. O amor irradia de seus olhos pelas coxas altaneiras dela. Que cintura! Que rebolado! Eu quero morrer aqui!
Quero fazer um samba em sua homenagem!
Skilo arranja um pandeiro e extrai dele o cuspe de Deus, entre os dois bares. E a noite samba como nunca sambou.