Quem passa, à meia-noite, pela Praça do Escritor Maior, se está
sintonizado com as forças paralelas da vida, ou mesmo se apertar um pouco os
olhos, ou espremer um pouco a alma, notará a tristeza que assalta certa
personalidade, considerada em vida um dos grandes escritores de São Paulo,
quiçá da Nação Brasileira.
Ali o vi quando voltava da casa de uma cunhada. Me aproximei
de seu busto como quem não queria nada. Não fiz as perguntas de praxe por
conhecer o Escritor Maior de longa data, nos meus muitos momentos de solidão
lilterária.
Fiz-lhe uma pergunta de supetão:
- Meu mano ( não estranhem essa intimidade, não há frescuras
entre nós), o que lhe deixa triste como a voz de um sino?
- Ah, Nato (assim só me chamam os íntimos da família), olha
essas pichações! Só de imaginar que em vez do meu busto poderia estar aqui o do
Menino Fininho, personagem que criei. Ainda bem que é o meu busto que aqui está..
- Mas, Afonso, são os vândalos. A culpa é da falta de
educação. Os meninos que fazem isso tiveram pais ausentes e....
- Quisera crer que fosse só isso....
E ficou soluçando bastante.
Parecia que seu soluço se estenderia por toda a madrugada. Cada lágrima sua era
uma gota pesada de melancolia.
Meus olhos estavam pesados, em petição de miséria. Como o
resto do corpo.
De súbito, ouvi um barulho de bigorna sendo arrastada. Um
vulto. Gritei:
- Quem vem lá?
- Apenas um operário arrastando uma bigorna e trazendo uma
placa de bronze no pescoço..
- Peraí. Tou te reconhecendo. Você não tava na Praça das
Indústrias, na frente do Teatro Municipal?
- Uns vândalos roubaram meu corpo-escultura, mas, eu – a alma
daquela obra - consegui escapar. Tenho medo de voltar pro mesmo lugar. Além do mais, nem sei o que fizeram de meu
corpo-escultura. Aqui, vivo a arrastar esta bigorna toda madrugada. Porém, não
faço mal a ninguém. E só os sensíveis como tu percebem.
- Por que aqui?
- Porque esta praça é simbólica pra nós, esculturas. Aqui
fica o busto do valoroso Escritor, que amou esta terra como poucos. Por
milagre, ainda não foi roubado.
- Tá bom. Entendo. Pode continuar seu caminho. – E me
sentei.
- Daqui há pouco. Por enquanto, quero me sentar um pouco.
Posso me sentar a seu lado?
- Pode.
- Ontem, encontrei a alma do busto de Getúlio Vargas. Vive a
rodear a praça que leva seu nome, deixando, volta-e-meia, a cabeça cair...
- Sei. Deve ser porque roubaram a cabeça de seu busto.
- Veja que situação triste. A violência contra nós,
esculturas, não tem tamanho. É um descalabro.
- E onde andará a alma do busto do Grande Jornalista, que ficava na
entrada da cidade?
- Não sei.
- E a escultura que ficava sobre o obelisco da Praça
Taquaritinga?
- Que inferno! Como eu vou saber?
- Calma, foi só uma pergunta...
A alma da escultura do operário se levantou e continuou a
arrastar sua bigorna. Fazia um barulho horrendo.
Acabei adormecendo ali mesmo, quase ao lado do busto do Escritor, que se aquietara.
Quando acordei, olhei no celular e já era meio dia.
O que iriam dizer no meu serviço? De novo, o aluado chegando
atrasado. Nenhum deles iria querer saber das minhas insônias constantes.
A meu lado, percebi uma série de rostos. Uma mulher sem
dentes. Um homem fedorento. Uma criança de peito. Eram, pelo que percebi, mendigos
que ali encontraram espaço, por enquanto, até serem expulsos ou encontrarem
abrigo em outra praça.
Quando olhei a criança, me veio à mente um fato que lera no
depoimento de um vereador eleito. Um fato que ficará comigo durante muito
tempo. Ele vira uma criança pegar uma chupeta que caíra numa vala e pôr à boca.
O que posso fazer a respeito desse fato? O que podemos fazer?
Senti debaixo de mim uns jornais. Na certa, aquela mendiga
de olhar mais gentil os colocara.
Peguei um dos jornais e li que está sendo feito um
levantamento das depredações nas praças para um programa de recuperação. Que
bom. Talvez essas almas de esculturas penadas tenham paz.